7 de janeiro de 2008

Babellogos = Babel + Logos



Nem sempre o pior é certo
Calderón de la Barca


Por dever de ofício, tenho acompanhado a evolução da legislação urbanística portuguesa e conheço razoavelmente as lógicas que têm regido a sua aplicação. De um modo geral, julgo que a lei tem evoluído de forma positiva. Hoje, ao contrário de um passado recente, é possível alertar e questionar abertamente as soluções urbanísticas que atentam contra os direitos colectivos e individuais dos cidadãos. Um progresso particularmente apreciado por pessoas da minha geração. Quase todos os que dobraram a barra dos sessenta anos – como é meu caso – foram forçados a acatar, em silêncio, as ordens de um poder político que se dava ares de todo-poderoso. Ainda hoje esse silêncio pesado e paralisante ecoa nos nossos ouvidos.

Poder discordar de quem está investido de poderes de autoridade talvez não resolva, de imediato, qualquer problema. Em todo caso, por mais rudimentar que seja esse exercício de liberdade, sempre é uma forma de mantermos a sanidade mental, condição necessária para, adiante, lidar racionalmente com os problemas que nos são colocados. A crítica precede sempre o acto criativo e, se não exercitarmos a nossa capacidade de pensar criticamente os negócios da república, arriscamo-nos a criar uma cidade em que a razão, na melhor das hipóteses, cede lugar à fantasia.

Felizmente deixámos para trás o totalitarismo do Estado Novo e hoje já podemos contestar o modo como a velha máquina tecnoburocrática pretende aplicar a lei urbanística, tantas vezes entortando os mais elementares princípios do direito. Ao contrário do que dava a entender a propaganda oficial do anterior regime, os tecnoburocratas não têm o privilégio divino de escrever direito por linhas tortas. Se as linhas com que se cose o nosso incipiente urbanismo aparentam ser direitas é porque, quase de certeza, foram muito engenhosamente retorcidas. Caso este blog cresça e amadureça, terei muitas ocasiões de exemplificar aquilo que acabo de afirmar. Por agora basta acentuar que a legislação urbanística ainda não conseguiu afinar grande parte das suas normas pelo padrão da democracia participativa para que aponta o segundo artigo da Constituição da República Portuguesa de 1976.

O desfasamento entre a lei fundamental e as leis avulsas que regem o urbanismo manifesta-se, de forma cada vez mais veemente, no quotidiano dos nossos tribunais. Todos os dias, os meios de comunicação social relatam conflitos suscitados por extravios na construção das nossas cidades e na transformação do nosso território. Os leigos em matéria de direito de urbanismo que se afoitam a acompanhar essas novelas rapidamente ficam enredados por obtusos argumentos legais e técnicos, cuja racionalidade lhes é cada vez mais difícil descortinar. Na ideia dos cidadãos, na lei deveria imperar a objectividade e nos tribunais deveriam ouvir-se discursos racionais. No caso do urbanismo e em Portugal, a objectividade da lei vale sobretudo para disfarçar a arbitrariedade das decisões tomadas por aqueles que nos administram. Por sua vez, os tribunais vêem-se em sérias dificuldades para, de forma coerente e inteligível, fazer justiça com base em textos legais que teimam em passar à margem da realidade.

Se o anterior retrato é fidedigno, advinha-se ser tarefa difícil diagnosticar e desfazer a confusão que tem tomado conta da legislação urbanística portuguesa. Para levar a cabo tal empresa será necessário construir uma visão do mundo mais ampla do que aquela em que se apoia o juízo das instâncias públicas que governam as cidades. Aqui o êxito é duvidoso se tivermos consciência que, no âmbito da União Europeia, o nosso país distingue-se por possuir um dos mais labirínticos sistemas de planeamento urbano e territorial...

Felizmente, a tecnoburocracia tem as suas limitações. Tomando para ponto de partida os trabalhos de Georges Dumézil sobre a organização trifuncional das sociedades nascidas da matriz indo-europeia, direi que os tecnoburocratas gostam de alardear a sua força (função 2), são ciosos da soberania que exercem sobre o território (função 1), mas demonstram sérias dificuldades em garantir a fecundidade da sua acção (função 3). Se há crítica partilhada por todos aqueles que sofrem os efeitos no nosso ronceiro planeamento é a de que o sistema parece ter sido concebido para ir buscar a morte lenta: a elaboração dos planos arrasta-se por decénios e cria um clima estiolante, onde definham as mais vigorosas iniciativas. É certo que, nestes últimos anos, assistimos à ascensão de uma função mais jovem e dinâmica, relacionada com actividades fora dos cânones institucionais das primitivas sociedades indo-europeias: o nec otio, o não ócio, o negócio (função 4). Mas a agitação trazida pela emergência da função negocial traduz-se não tanto numa maior celeridade na satisfação dos interesses públicos, mas sobretudo na maior generosidade com que são viabilizadas as iniciativas dos particulares que merecem o selecto carimbo de interesse nacional.

Quando o percurso discursivo atinge este ponto é tentador cair num moralismo rasteiro e vociferar contra a velhacaria do nosso sistema de planeamento. Por mim, espero sinceramente escapar a essa tentação, tal como espero que este blog não sirva de atractor a lamentações dessa natureza. Como antídoto ao moralismo lamechas que tantas vezes tolda a nossa capacidade crítica, invoco aqui o mito da Torre de Babel, tal como relatado em na Bíblia, no décimo primeiro capítulo do Livro do Génesis:

1 Em toda a Terra, havia somente uma língua, e empregavam-se as mesmas palavras.
2 Emigrando do oriente, os homens encontraram uma planície na terra de Chinear e nela se fixaram. 3 Disseram uns para os outros: «Vamos fazer tijolos, e cozamo-los ao fogo.» Utilizaram o tijolo em vez da pedra, e o betume serviu-lhes de argamassa. 4 Depois disseram: «Vamos construir uma cidade e uma torre, cujo cimo atinja os céus. Assim, havemos de tornar-nos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a superfície da Terra.»
5 O SENHOR, porém, desceu, a fim de ver a cidade e a torre que os homens estavam a edificar. 6 E o SENHOR disse: «Eles constituem apenas um povo e falam uma única língua. Se principiaram desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem todos os seus projectos. 7 Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros.»
8 E o SENHOR dispersou-os dali por toda a superfície da Terra, e suspenderam a construção da cidade. 9 Por isso, lhe foi dado o nome de Babel, visto ter sido lá que o SENHOR confundiu a linguagem de todos os habitantes da Terra, e foi também dali que o SENHOR os dispersou por toda a Terra.

Pieter Bruegel, o Velho, Torre de Babel, 1563
Kunsthistorisches Museum, Viena

Na interpretação vulgar deste mito é comum acentuar o carácter negativo de Babel, encarada como símbolo da soberba humana. De acordo com esta leitura, a diferenciação da “língua única” tem o amargo sabor de um castigo divino e é a prova de que estamos definitivamente fora do espaço e do tempo paradisíacos, outrora usufruídos no Jardim do Éden... Ora bem, a leitura corrente passa ao lado de um aspecto essencial: se com a expulsão do Paraíso, o par humano perdeu a imortalidade mas ganhou a liberdade, com a suspensão da Torre de Babel, a comunidade humana perdeu a unicidade e, por isso mesmo, ganhou a consciência da importância da solidariedade que deve existir tanto entre os homens, como entre as nações. Pois só aspira à reunião quem se encontra separado.

O paralelismo e a complementaridade entre os dois mitos podem ser sintetizados na ideia de que só são verdadeiramente livres aqueles que são incondicionalmente solidários com os seus semelhantes. Se assim é, a expulsão do Éden e a dispersão a partir de Babel não devem ser encaradas como situações puramente negativas, mas antes como o prenúncio de algo positivo. Nos momentos críticos é necessário tomar consciência dos limites acanhados do passado se quisermos evoluir para um futuro mais completo e universal.

Sem Babel e sem a confusão das línguas a palavra seria plana, sem elevação, a música seria monocórdica, sem harmonia, e a poesia pura e simplesmente não existiria... Sem Babel e a sua confusão faltaria o impulso para o ordenamento racional da cidade. E sem esse impulso, os gregos não teriam sido levados a impor à “palavra”, logos (λόγος), o sentido de “razão”, um passo essencial para contrariar a ruína anunciada da cidade dos homens ou, dito de outra forma, um passo essencial para construir a cidade democrática e solidária.

A cidade governada por uma razão promotora da solidariedade entre os cidadãos parece ser uma utopia inatingível. Mas, à luz do mito de Babel, mesmo correndo o risco de iniciar uma obra destinada a ser interrompida, não devemos desistir dessa utopia. A catástrofe final não é garantida pois, como nos assegura Pedro Calderón de la Barca, no siempre lo peor es cierto.

Sem comentários: