21 de fevereiro de 2008

Manuel Vicente na Ordem (1)

Efemérides e inquietudes


Envie as suas inquietudes para: LISTA C
Blogue MV na OA



Ponto de situação

As eleições para os órgãos nacionais da Ordem dos Arquitectos vão ser repetidas no próximo dia 29 do corrente mês de Fevereiro.

Esta situação inédita decorre de uma decisão da comissão eleitoral que, por maioria, considerou inelegível Manuel Vicente, candidato ao cargo de presidente do conselho directivo nacional e cabeça da lista C.

I
nconformado com a decisão que o excluía do acto eleitoral, Manuel Vicente recorreu para o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, apoiado em parecer jurídico favorável à sua causa, previamente emitido a pedido do cessante conselho directivo nacional da ordem, presidido pelo próprio Manuel Vicente.

O tribunal assumiu as conclusões do parecer e deu razão a Manuel Vicente, condenando a ré — isto é, a ordem — a repetir o acto eleitoral que havia sido realizado no passado dia 18 de Outubro, desta feita com a participação da lista C, devidamente encabeçada por Manuel Vicente.

O
recém empossado conselho directivo nacional, presidido por João Rodeia, decidiu não recorrer da sentença e promover a organização do acto eleitoral que está prestes a ocorrer. Contudo, no momento em que tomou esta decisão, o conselho não deixou de alertar para a ameaça que a sentença do tribunal representa para a identidade da ordem:
Totalmente alheio à origem e ao desfecho deste processo de contencioso eleitoral — movido contra a Ordem dos Arquitectos pelo seu ex-Presidente — o Conselho Directivo Nacional respeita a decisão do tribunal, na mesma medida em que dela discorda. Discorda porque entende que a mesma põe em causa valores fundamentais desta instituição, como o são a inexistência de um bastonário, a colegialidade democrática de todos os seus órgãos sociais, e a clara limitação do seu exercício de poder. [»]

A presente mensagem acompanha os sucessivos passos que conduziram à actual situação e comenta o filme resultante dos acontecimentos tendo presente duas leituras possíveis:
- ou se considera que Manuel Vicente é vítima de uns estatutos que pecam por falta de democracia — e então as críticas endereçadas à “velha ordem” têm a sua razão de ser;
- ou se entende que Manuel Vicente ataca os estatutos porque estes o impedem de alcançar um poder a que, paradoxalmente, não deveria aspirar — e então os arquitectos, sejam quais forem as suas simpatias por qualquer das listas concorrentes, estão a ser vítimas de um esquema que, para já, me abstenho de qualificar.

Para percebermos o imbróglio em que Manuel Vicente colocou a ordem irei procurar respostas para inquietudes sugeridas por um encadear de acontecimentos que já vai suficientemente longo para começarmos a perceber o sentido de muitas pontas deixadas soltas pelo caminho.

A rematar esta mensagem deixo algumas sugestões para a futura direcção da ordem, tentando tirar partido de um episódio que, se até agora assumiu contornos pouco edificantes, não deixa, por isso, de conter ensinamentos sobre o modo como respeitar as normas que regem o comportamento dos arquitectos no seio da sua associação profissional.


Efemérides

A.
Antecedentes

/1/ 1988.12.15
Estatuto da Associação dos Arquitectos Portugueses
(Decreto-Lei n.º 465/88, de 15 de Dezembro)
Artigo 11.º, “Carácter do exercício de cargos sociais”, n.º 2:
Não é admitida a reeleição dos membros do conselho directivo nacional e dos conselhos directivos regionais para um terceiro mandato consecutivo nem nos três anos subsequentes ao termo do segundo mandato consecutivo. [»]

/2/ 1998.07.03
Alteração dos estatutos da Associação dos Arquitectos Portugueses, que passa a ser designada por Ordem dos Arquitectos
(Decreto-Lei n.º 176/98, de 3 de Julho)
Artigo 10.º, "Regras gerais", n.º 2:
Nos cargos do conselho directivo nacional e nos conselhos directivos regionais não é permitida a reeleição para um terceiro mandato consecutivo nem nos três anos subsequentes ao termo do segundo mandato consecutivo. [»]

/3/
2002.01.15
Tomada de posse dos órgãos nacionais eleitos para o triénio 2002-2004.
Helena Roseta, presidente do conselho directivo nacional.
Manuel Vicente, vice-presidente do conselho directivo nacional.


/4/
2004.12.14
Tomada de posse dos órgãos nacionais eleitos para o triénio 2005-2007.
Helena Roseta, presidente do conselho directivo nacional.
Manuel Vicente, vice-presidente do conselho directivo nacional.


/5/
2007.07.14
Encontro nacional em Tomar para debater a revisão dos estatutos da ordem.
Aprovado o Manifesto Casa dos Cubos, documento que procura traduzir as preocupações de uma ordem descentralizada e aberta a toda a comunidade, mais representativa e próxima dos arquitectos e da sociedade, com base na experiência dos territórios. [»]

/6/ 2007.07.31
Helena Roseta renuncia ao cargo de presidente do conselho directivo nacional por ter sido eleita vereadora da câmara municipal de Lisboa. [»]


/7/
2007.08.02
Manuel Vicente toma posse do cargo de presidente do conselho directivo nacional. [»]



B.
Processo eleitoral passado

/8/
2007.08.05
Manuel Vicente publicita a sua candidatura a presidente do conselho directivo nacional.
Primeira mensagem afixada no blogue MV na OA, intitulada “Em preparação”. [»]


/9/ 2007.08.06
Segunda mensagem afixada no blogue MV na OA, intitulada “Programa da Candidatura – As três Redes” (o sublinhado é meu):
A Ordem como uma rede interactiva:
Profissional –
[...]
Nacional – descentralização das Secções Regionais, criação de novas secções por todo o país.
Internacional –
[...] [»]


/10/ 2007.08.07
Terceira mensagem afixada no blogue MV na OA, intitulada "estatutos" (o sublinhado é nosso):
Desde o início da formulação desta candidatura, foram postos em estudo os estatutos da OA na tentativa de perceber se seria possível, ou não, avançar formalmente com a nossa proposta. Hoje, após recepção de uma opinião jurídica, percebeu-se que não será possível. A alínea em causa é a seguinte:
Artigo 10º - Regras gerais
2. Nos cargos do conselho directivo nacional e nos conselhos directivos regionais não é permitida a reeleição para um terceiro mandato consecutivo nem nos três anos subsequentes ao termo do segundo mandato consecutivo.
A dúvida residia na possibilidade de esta alínea referir-se a cargos iguais. Verificou-se que não; impossibilita, antes, toda a equipa da Direcção de se candidatar a um terceiro mandato, independentemente do lugar que ocupem e do lugar que ocupariam.Um excerto da apreciação por nós recebida:
O preceito legal em causa deve ser interpretado no sentido de não permitir a realização de mais do que 2 mandatos no mesmo órgão. E esta conclusão vale mesmo que o membro tenha assumido funções diferentes daquelas às quais se pretende agora candidatar.
Por esta perspectiva, esta candidatura, infelizmente, não seria possível.
Aguardemos por novos desenvolvimentos.
Obrigado a todos.
[»]


/11/
2007.08.08
Quarta mensagem afixada no blogue MV na OA, intitulada "Estatutos II — Novos Desenvolvimentos", neste caso assinada por mv (os sublinhados são nossos):
Em contactos posteriores com o jurista autor da apreciação anterior, decidimos por sua sugestão pedir novo parecer jurídico, dada uma certa margem de indefinição no articulado no artigo em causa.
Aos presumidos apoiantes da minha candidatura, peço sugestões para eventual substituição do meu nome, caso a impossibilidade jurídica se confirme; dado que, comigo ou com outro candidato, o projecto está em marcha.
Voltaremos a este assunto tão cedo quanto possível.
[»]


/12/
2007.09.05
O conselho directivo nacional solicita ao professor doutor Rui Medeiros, da Sérvulo Correia & Associados, um parecer respeitante ao n.º 2, do artigo 10.º dos estatutos da ordem.
[»]

Professor Doutor Rui Medeiros


/13/
2007.09.14
Na ordem dão entrada três listas candidatas aos órgãos nacionais da ordem:
Lista A - Todos pela Arquitectura, encabeçada por João Rodeia.
Lista B - Por uma Ordem de Valores, encabeçada por Luís Conceição.
Lista C - Uma Ordem em Rede, encabeçada por Manuel Vicente. [»]



Cabeçalhos dos sítios ou blogues das listas A [»], B [»] e C [»]


/14/ 2007.09.14
O conselho directivo nacional recebe o parecer jurídico de Rui Medeiros, intitulado Estatuto da Ordem dos Arquitectos - Normas de Direito Eleitoral.
Entre outras conclusões, o parecer afirma que:
[...] um candidato que, em dois mandatos consecutivos e nos três anos anteriores à sua candidatura, tenha ocupado os lugares de vice-presidente [...] do conselho directivo nacional é, ainda assim, elegível para presidente do mesmo órgão, e vice-versa. [»]

/15/ 2007.09.14
Em declarações ao Construir, o cabeça de lista Manuel Vicente revela que a sua candidatura “não é de continuidade” com o trabalho feito por Helena Roseta e manifesta a sua vontade de aproximar a ordem do território nacional, nomeadamente à população e à sociedade civil, não esquecendo as relações fronteiriças.
Manuel Vicente critica a promoção, por parte da ordem, de determinadas figuras da arquitectura, revelando que num universo de cerca de dezasseis mil profissionais não faz sentido promover cerca de quinze. [»]


/16/ 2007.09.17
O conselho directivo nacional dá conhecimento do parecer de Rui Medeiros e de Marisa Martins Fonseca ao presidente da mesa da assembleia geral da ordem, Carlos Guimarães, a fim de auxiliar os trabalhos da comissão eleitoral. [»]


/17/ 2007.09.18
A comissão eleitoral considera que Manuel Vicente é uma figura inelegível e exige a sua substituição:
Carlos Guimarães informou o constrangimento que a situação levantada pela candidatura do arquitecto Manuel Vicente suscitou à Mesa [da Assembleia Geral ] e possivelmente ao próprio acto eleitoral.
A leitura que a Mesa faz daquele ponto baseia-se na jurisprudência prática, no entendimento que tem sido consensual de que o órgão a eleger, no caso o Conselho Directivo Nacional, tem um comportamento interno de solidariedade, que configura um caso diferente do das outras ordens profissionais onde o bastonário não tem par e que a distinção entre cargos e mandatos não faz sentido na OA. Esclareceu que é entendimento da Mesa que a candidatura do arquitecto Manuel Vicente, membro n.º 665, não cumpre o que está estipulado no Estatuto da OA, nomeadamente no ponto 2 do artigo 10.º e que a candidatura, para manter-se, deverá proceder à substituição da figura não elegível.
Não havendo convergência de posição sobre a questão procedeu-se a votação, cujo resultado foi quatro votos a favos, dois votos contra e uma abstenção.
[»]


/18/ 2007.09.20
Manuel Vicente apresenta à comissão eleitoral um documento, cujo quinto e último ponto expende as seguintes considerações (o sublinhado é meu):
Nem se compreende, aliás, que tendo sido o referido parecer [de Rui Medeiros] solicitado pelo Conselho Directivo Nacional precisamente para eliminar as dúvidas de interpretação existentes, venha agora a Comissão, sem fundamentação jurídica adequada e suficiente para afastar a interpretação feita naquele parecer, decidir em sentido contrário. Tanto mais que o invocou para fundamentar as suas restantes deliberações.
Com efeito, a “jurisprudência prática” ou o “entendimento consensual” que invoca a Comissão não são suficientes para afastar a argumentação jurídica fundamentada que o parecer desenvolve, tanto mais que é inquestionável a autoridade académica e a independência dos seus autores.

Pela própria natureza da sua composição, a Comissão não está em condições de undamentar adequadamente uma decisão em sentido inverso daquele que é proposto no parecer em questão. A comissão pode, no entanto, caso mantenha as suas dúvidas de interpretação no n.º 2 do artigo 10.º do Estatuto da Ordem dos Arquitectos, solicitar a elaboração de um novo parecer a outro jurista de mérito reconhecido, por forma a ultrapassar o impasse criado com a sua decisão.
Nestes termos, a Lista C vem requere à Comissão que admita a sua candidatura às eleições para os órgãos sociais da OA, solicitando, caso estenda necessário para o efeito, a elaboração de um novo parecer académico a um jurista de reconhecido mérito.
[
»] [p. 21]

/19/ 2007.09.20
A comissão eleitoral delibera excluir a lista C do acto eleitoral:
O Presidente da Comissão Eleitoral [Carlos Guimarães] deu conhecimento da posição dos elementos da Mesa da Assembleia Geral no sentido da não aceitação das solicitações do referido documento [referido no número anterior]. Após a discussão das matérias nele contidas foi proposto à Comissão Eleitoral considerar que a Lista C não reúne condições para se apresentar ao acto eleitoral pelo facto do primeiro candidato ao Conselho Directivo Nacional não reunir condições de elegibilidade em função do preceituado no ponto 2 do artigo 10.º dos Estatutos da Ordem dos Arquitectos.
Igualmente foi proposta a não aceitação de ser pedida a elaboração de um outro parecer jurídico.
Postas estas propostas à votação verificou-se um resultado de três votos a favor, dois votos contra e duas abstenções. Assim, a candidatura C foi excluída do próximo acto eleitoral.
[»] [p.19]


/20
/ 2007.09.21
Afixação das listas concorrentes às eleições e dos respectivos programas. [»]


/21/ 2007.09.21
A lista B coloca ao blogue MV na OA uma mensagem de desagravo e de solidariedade para com Manuel Vicente:
Relativamente à notícia do Público de 21 de Setembro de 2007 — “ELEIÇÕES PARA A ORDEM DOS ARQUITECTOS CORREM O RISCO DE SER IMPUGNADAS” — e aos actos que lhe deram origem, a Lista B sente-se no Direito e no Dever de se Manifestar!
1. - A nossa Lista candidata-se por conceitos, por princípios, por valores;
2. - Não somos candidatos contra ninguém!
3. - Acreditamos no acto eleitoral LIVRE e DEMOCRÁTICO, como momento de partilha e confronto de ideias e de opiniões.
4. - A possibilidade de que haja UM ÚNICO ARQUITECTO, na plenitude dos seus direitos cívicos e profissionais e das suas capacidades físicas e mentais impedido, burocraticamente, administrativamente, de se submeter livremente a sufrágio inter paris, seja com base em leis estatutárias mal concebidas, mal redigidas ou mal interpretadas, INCOMODA-NOS e CONFRANGE-NOS!
5. - Porque acreditamos e queremos uma Ordem de Valores, uma Ordem para Todos e uma Ordem na Rede, solidarizamo-nos com o Colega Manuel Vicente, com a Lista que ele encabeça e com os seus Apoiantes, na sua indignação, na nossa qualidade de cidadãos livres, de arquitectos e de candidatos aos Órgãos do Conselho Directivo Nacional da Ordem dos Arquitectos!
POR UM PROCESSO ELEITORAL LIVRE, TRANSPARENTE, PROPOSITIVO E DEMOCRÁTRICO!
[»]


/22/ 2007.09.24
Manuel Vivente interpõe, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, uma acção de contencioso eleitoral contra a ordem, impugnado as deliberações da comissão eleitoral. [»]


/23/ 2007.09.24
O conselho directivo nacional publicita o parecer de Rui Medeiros. [»]


/24/ 2007.10.18
Assembleias para a eleição dos órgãos sociais da ordem para o triénio 2008-2010. [»]


/25/ 2007.10.22
Publicitada a declaração de voto de seis membros do conselho directivo nacional não participantes no acto eleitoral (declaração anexa à acta da reunião de 4 de Outubro).
Os membros não participantes asseguram os meios necessários à defesa da comissão eleitoral, garantindo a sua independência. Contudo lamentam a situação criada, lesiva para os interesses da ordem, e alertam para os riscos inerentes à continuação do acto eleitoral sem que seja proferida a decisão judicial. [»]


/26/ 2007.11.07
As comissões eleitorais homologam os resultados do acto eleitoral.
Órgãos nacionais:
Assembleia eleitoral do Norte:
- lista A (570), lista B (189), brancos (76), nulos (10).
Assembleia eleitoral do Sul:
- lista A (892), lista B (503), brancos (79), nulos (16).
Total nacional:
- lista A (1462), lista B (692), brancos (155), nulos (26). [»]


/27/ 2007.11.23
Termina o prazo que a lista C estimou como razoável para o tribunal proferir a sua sentença. [»]


/28/ 2007.11.29
Tomada de posse dos órgãos nacionais eleitos para o triénio 2008-2010.
João Rodeia, presidente do conselho directivo nacional. [»]


/29/
2007.12.14
A ordem é notificada do acórdão do tribunal respeitante ao processo movido por Manuel Vicente.
O tribunal considera nulas as deliberações da comissão eleitoral.
A ordem é condenada a admitir a lista C às eleições e a realizar novo acto eleitoral. [»]


/30/ 2007.12.18
Comunicado dos arquitectos do sector intelectual da organização regional de Lisboa do Partido Comunista Português:
A Ordem dos Arquitectos chegou às eleições do passado dia 30 [sic.] de Outubro com uma situação interna particularmente degradada. [...]
A essa situação veio acrescentar-se um processo eleitoral polémico, conflituoso e pouco ransparente, que levou uma candidatura, excluída do processo, a interpor recurso dessa decisão no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa. O tribunal acaba de considerar procedente o recurso e, em consequência, de considerar nulo o processo eleitoral.
A lista mais votada nas eleições agora anuladas tinha entretanto tomado posse, acrescentando uma precipitação incompreensível à confusão existente.
[...] Foi mais um momento de um velho ciclo e mais um elemento de agravamento da crise que paralisa a OA. A situação na OA poderá eventualmente ser ultrapassada. Mas os obstáculos são muitos e complexos. [...]
Os arquitectos comunistas do Sector Intelectual da ORL do PCP lançam um veemente apelo a todos os arquitectos no sentido de que intervenham na vida da sua associação profissional. No sentido de que contribuam para libertar a OA da estreita teia de interesses particulares em que alguns Dirigentes a foram fechando. No sentido de que se possa reconstruir uma OA legítima e credível, e mais capaz de representar efectivamente os interesses, as aspirações e o papel dos arquitectos na sociedade portuguesa. [»]


/31/ 2007.12.20
Tiago Mora Saraiva, membro do conselho directivo nacional cessante, refere-se ao comunicado do PCP nos seguintes termos:
A situação é inusitada, cada vez mais alarmante no que diz respeito às boas práticas democráticas e preocupante numa associação e direito público que se quer forte e representativa de todos os seus associados. Não sei se pela primeira vez, o PCP entendeu, de uma forma pública e clara, apelar a que todos os arquitectos intervenham na Ordem dos Arquitectos para "libertar a OA da estreita teia de interesses particulares em que alguns dirigentes a foram fechando".
Neste momento, nenhum outro partido poderia emitir um comunicado com esta clareza e que fizesse de uma forma tão firme eco do que pensa a esmagadora maioria dos associados da Ordem dos Arquitectos.
[»]


/32/ 2007.12.20
O conselho directivo nacional entrega no tribunal um pedido de aclaração da sentença. [»]

/33/ 2008.01.18
O tribunal esclarece que, no caso de se realizarem novas eleições, estas serão uma repetição do acto eleitoral apenas para os órgãos nacionais. [»]


/34/
2008.01.29
O conselho directivo nacional decide não recorrer da sentença do tribunal e solicita à mesa da assembleia geral a convocação de eleições para o dia 29 de Fevereiro. [»]


/35/ 2008.02.00
Publicados os programas das listas concorrentes ao acto eleitoral no boletim Informação Arquitectos, n.º 180-181, Janeiro/Fevereiro de 2008.
Programa da lista C, Uma Ordem em Rede
1. Revisão dos Estatutos da Ordem dos Arquitectos
[...]
1.3. Direcção Nacional
Uma Presidência exercida como magistratura de influência e de direcção política e em colegialidade:
constituição de um Conselho formado pelos Presidentes das Secções Regionais e do Presidente da OA, o último com direito a veto qualificado, com a competência de definição das políticas da arquitectura a prosseguir pela OA, estando igualmente incumbindo de avaliar dinamicamente a aplicação do programa eleitoral. Este Conselho reunirá mensalmente.
[»]



Páginas de rosto dos panfletos eleitorais das listas A, B e C [»]




Inquietudes


A.
Quem se lembra das disposições originárias sobre a limitação de mandatos?

A qualidade de entidade pública foi conferida à associação profissional dos arquitectos pelo diploma que aprovou os estatutos da AAP, Associação dos Arquitectos Portugueses (Decreto-Lei n.º 465/88, de 15 de Dezembro). /1/

Decorridos os dez primeiros anos de existência, os estatutos da AAP foram objecto de diversas alterações, tendo a associação passado a ser designada por Ordem dos Arquitectos (Decreto-Lei n.º 176/98, de 3 de Julho). /2/

Na versão originária dos estatutos, a redacção do artigo que impedia o exercício do terceiro mandato consecutivo não suscitava dúvidas de interpretação. A mesma redacção figurava no projecto de alteração de estatutos, elaborado pela AAP nas vésperas da sua passagem da a Ordem dos Arquitectos. Essas alterações foram aprovadas pelos arquitectos mediante referendo. [1]

A redacção adoptada nos actuais estatutos da ordem e que hoje suscita dúvidas de interpretação é da exclusiva responsabilidade da Presidência do Conselho de Ministros. /2/

Note-se que a redacção originária refere-se a membros — e não a cargos —, tal como aliás sucede em França, onde a segunda alínea do artigo 24.º da lei da arquitectura dispõe que:
Le conseil national [de l’Ordre des architectes] est élu pour six ans par les membres des conseils régionaux parmi les personnes exerçant ou ayant exercé un mandat de membre d’un conseil régional. Il est renouvelé par moitié tous les trois ans. Les membres du conseil national ne peuvent exercer un second mandat que si le premier n’a pas excédé trois ans. [2] [»]

Note-se também que o parecer jurídico de Rui Medeiros não recua à redacção originária da disposição controvertida, atendo-se apenas à redacção consagrada da lei em vigor. Aliás, nas restantes peças do processo, tanto da acusação como da defesa, os argumentos são construídos a partir das leis em vigor e não dos seus antecedentes imediatos. Assim, de um ponto de vista jurídico, para a condenação da ordem pelo tribunal bastou a letra da lei.

O silêncio do tribunal relativamente à genese dos estatutos da ordem em nada diminui a legitimidade e a autoridade da sua setença. No entanto, as leituras e os aproveitamentos que as diversas candidaturas possam fazer dessa mesma sentença não devem ignorar as suas dimensões histórico-políticas, sob pena de transferirem, para o exterior da ordem, critérios de juízo ético que devem ser discutidos e afeiçoados no seio das estruturas representativas dos arquitectos.

Este ponto é particularmente delicado por uma simples razão:
a esmagadora maioria dos actuais 15.000 arquitectos filiados na ordem não participou activamente na discussão dos seus estatutos. Por isso, são muito poucos os que têm plena consciência de que a acção interposta por Manuel Vicente, embora sustentada na letra da lei, colide com a redacção originária de um perceito que, a todos os membros do conselho directivo nacional, impõe limites à sua permanência à frenta da ordem, isto de acordo com a ética republicana que, pelo menos até agora, tem inspirado a organização institucional dos arquitectos portugueses.


B.
Quem pediu o parecer que desautoriza a interpretação tradicional do princípio da limitação dos mandatos consecutivos?

Segundo julgo saber, no momento em que a AAP deu lugar à actual ordem, Manuel Vicente exercia a sua profissão de arquitecto em Macau, pelo que não terá tido a oportunidade de acompanhar de perto os debates travados em Lisboa e dos quais resultaram o princípio da limitação do número de mandatos consecutivos.

Caso tenham ocorrido as anteriores circunstâncias, são mais compreensíveis as hesitações de Manuel Vicente quando do lançamento da sua candidatura.
Dito de outra forma, se Manuel Vicente conhecesse, em primeira mão, o espírito dos estatutos, estou convicto que se teria abstido de avançar pelo caminho que neste momento é forçado a precorrer: para defender os seus direitos individuais é obrigado a pôr em causa o bom nome da ordem.

Contudo, Manuel Vicente, como ele próprio implicitamente reconhece, caiu na tentação de escancarar a porta entreaberta por um jurista por ele inominado, quando este chamou a sua atenção "para uma certa margem de indefinição" dos estatutos e o aconselhou a obter "novo parecer jurídico". /11/

A partir daqui, gera-se uma situação inédita e curiosa: o presidente do conselho directivo nacional da ordem apresenta-se como candidato a esse mesmo cargo, sendo que, para alcançar tal objectivo, tem de questionar uma disposição da magna carta da instituição a que quer presidir. Magna carta que, no acto de posse, seja como vice-presidente ou presidente, Manuel Vicente se comprometeu a respeitar e a defender...

Chegados a este ponto, para além de encontrármos o mundo viardo do avesso, deparamos com duas questão práticas muito simples: quem pediu e quem pagou o parecer jurídico que abriu caminho à candidatura de Manuel Vicente? Passo ao lado da questão de quem paga o parecer. Trata-se de uma dúvida que, em última análise, é resolúvel à luz das mais simples regras de boa educação. Mais interessante é a questão de saber quem pediu o parecer jurídico que soube fragilizar princípios estatutários até agora incontestados.

Numa primeira fase, a hipótese de recorrer a um jurisconsulto foi equacionada e noticiada no âmbito da candidatura da lista C. Nesse âmbito, o candidato Manuel Vicente não está seguro da sua razão e, inclusivamente, pede aos seus apoiantes a sugestão de um nome para o substituir à cabeça da lista, "caso a impossibilidade jurídica se confirme". /11/

Simplesmente, o pedido do parecer morreu no âmbito da candidatura e, passado um mês, renasce revigorado à mesa do conselho directivo nacional a que Manuel Vicente preside. Neste novo enquadramento, depreende-se que ao conselho já não basta a opinião do seu assessor jurídico, pelo que delibera consultar Rui Medeiros, um jurisconsulto com autoridade firmada nos domínios do direito constiticional e administrativo.
/12/


Não vou comentar este volte face no andamento normal de um assunto que, salvo melhor opinião, deveria correr pelo estado maior de Manuel Vicente e não pelo conselho da ordem. Apenas chamo a atenção para a mais-valia que representa um parecer requerido, supõe-se, pelos seis membros do conselho não participantes no acto eleitoral. Digo "supõe-se" porque o sítio da ordem não dá uma explicação clara e cabal para esta iniciativa do conselho, nem esclarece quais os membros que a subscrevem. /cf. 25/ E chamo a atenção para a "mais-valia" porque a circunstância de o parecer de Rui Medeiros ter sido pedido pela direcção da ordem terá certamente pesado, a favor de Manuel Vicente, na ponderação dos vários argumentos em confronto no tribunal.


C.
A comissão eleitoral devia barrar o caminho à candidatura de Manuel Vicente?

Ao que parece, a comissão eleitoral não podia impedir a candidatura a candidatura de Manuel Vicente, uma vez que, de um ponto de vista jurídico, não estava em condições de fundamentar uma decisão em sentido inverso daquele que era proposto no parecer de Rui Medeiros. /cf. 19/

Não sendo licenciado em direito — tal como os membros da comissão eleitoral —, sou forçado a declarar-me incompetente para discutir a questão no plano jurídico. No entanto, enquanto licenciado em arquitectura e membro da ordem, sinto-me com o direito de questionar o comportamento do conselho directivo e de manifestar a minha estranheza perante o modo inopinado como o paracer de Rui Medeiros surge no desenrolar do processo eleitoral. Recorde-se que o parecer é entregue a Carlos Guimarães na véspera da primeira reunião da comissão eleitoral, sem que tenha havido qualquer debate interno sobre a oportunidade da sua emissão e sobre a aceitabilidade das suas conclusões, nem ao menos a nível do conselho nacional de delegados, órgão presidido por João Rodeia...

Se o referido debate tivesse ocorrido, estou convencido que a questão do terceiro mandato consecutivo não teria sido colocada a Rui Medeiros. O princípio da limitação dos mandatos regeu perto de uma dezena de eleições sem suscitar qualquer reparo ou conflito por parte das centenas de arquitectos que, no respeito por esse princípio, não se candidataram a cargos de órgãos directivos da ordem. Tenho para mim que este facto é suficiente para questionar as opções políticas de um conselho directivo nacional que não hesitou em abrir uma verdadeira caixa de Pandora ao solicitar o parecer de Rui Medeiros, com a agaravante de esse pedido, nas condições em que foi feito, assumir os contronos de um favorecimento prestado à candidatura de Manuel Vicente.

De um ponto de vista jurídico, talvez a comissão eleitoral não pudesse excluir a lista C do acto eleitoral. Mas, de um ponto de vista ético e político, por respeito para com todos os arquitectos que abdicaram dos seus direitos individuais em benefício de um funcionamento mais democrático da ordem, a comissão eleitoral tinha a obrigação de barrar o caminho a Manuel Vicente. A maioria dos seus membros teve coragem para o fazer e, pessoalmente, agradeço-lhes uma decisão que veio repor alguma justiça num processo que, à luz dos dados disponíveis na NET, se assemelha cada vez mais a um golpe palaciano.


D.
A lista C pode ser apresentada como uma vítima da comissão eleitoral?

Na sequência de ter sido excluida do acto eleitoral, a lista C tem sido apresentada como vítima de uma comissão eleitoral prepotente. Pelo menos esse é o retrato desenhado em muitas páginas da NET. Ora, por paradoxal que seja, esse é o papel que mais convém à referida lista. Perante situações em que deparamos com vítimas temos a tendência para reagir emocionalmente, o que nem sempre constitui a melhor forma de compreender o enredo em que estamos envolvidos.

No presente caso, dado o desconhecimento ou o esquecimento das razões que levaram a ordem a limitar o número de mandatos consecutivos, a declaração de inegibilidade de Manuel Vicente parece ser uma intolerável restrição dos seus direitos individuais. Assim, enquanto esta leitura se mantiver, a lista C pode capitalizar a simpatia de muito arquitectos e, nessa medida, fortalecer a sua base eleitoral.

Face a este efeito, como reagiram a as restantes listas concorrentes às eleições?
Sobre a atitude assumida pela lista A, encabeçada por João Rodeia, falarei adiante, quando vir a propósito discordar da caracterização do presidente da ordem como um "bastonário". Quanto à posição da lista B, encabeçada por Luís Conceição, sublinho a rapidez com que manifestou publicamente a sua solidariedade para com Manuel Vicente, bem como o seu alinhamento com o teor do parecer de Rui Medeiros, designadamente quando afirma que:
A possibilidade de que haja UM ÚNICO ARQUITECTO, na plenitude dos seus direitos cívicos e profissionais e das suas capacidades físicas e mentais impedido, burocraticamente, administrativamente, de se submeter livremente a sufrágio inter paris, seja com base em leis estatutárias mal concebidas, mal redigidas ou mal interpretadas, INCOMODA-NOS e CONFRANGE-NOS!
/21/

Leis estatutárias — porventura mal concebidas, mas amplamente discutidas e votadas pelos arquitectos —, alteram-se mediante aquilo que a lista B exige no final do seu manifesto, isto é, mediante processos de discussão livres, transparentes, propsitivos e democráticos, conduzidos no seio da ordem,
e não através de golpes palacianos que colocam as questões da organização institucional dos arquitectos fora da ordem e nas mãos dos tribunais. Isto parece-me ser uma evidência ao alcance da lista B, se acso esta não fosse tão percipitada no seu juízo e se estivesse mais atenta aos nobres ideais que se propõe prosseguir.


E.
A setença do tribunal pode ser lida como um incentivo à criação do cargo de bastonário da ordem dos arquitectos?

A lista A, encabeçada por João Rodeia, não se deixou impressionar pelo aparato judicial que Manuel Vicente conseguiu congregar em seu favor, nem engrossou o coro daqueles que insistem em exigir a pública admoestação de Carlos Guimarães, pelo seu comportamento à frente da comissão eleitoral.

Mais do que isso, os arquitectos que integram essa lista, já na qualidade de membros do conselho directivo nacional empossado na sequência das eleições realizadas em 18 de Outubro do ano passado, não hesitaram em manifestar a sua discordância relativamente à sentença do tribunal. Como vimos no início da presente mensagem, o conselho :
[...] respeita a decisão do tribunal, na mesma medida em que dela discorda. Discorda porque entende que a mesma põe em causa valores fundamentais desta instituição, como o são a inexistência de um bastonário, a colegialidade democrática de todos os seus órgãos sociais, e a clara limitação do seu exercício de poder. [»]

Do trecho citado destaco a ideia de que o tribunal, com a sua decisão, está favorecer a emergência da figura de bastonário no seio da ordem dos arquitectos. Este ponto de vista será, porventura, algo exagerado. É certo que o tribunal subscreve a tese de que “o presidente do conselho directivo nacional congrega um núcleo de competências e deveres que formam um único cargo, distinto daquele que é ocupado pelos demais titulares desse conselho”, concluindo, a partir daí, que, “apesar de não estar elencado expressamente como órgão nacional”, o presidente “é, na verdade, um órgão singular integrado no referido conselho” [»] [p.25]. Ou seja, apesar da sua singularidade, o presidente não deixa de fazer parte integrante do conselho a que preside, o que contrasta com aquilo que sucede em França, onde o bastonário da ordem dos advogados (bâtonnier de l’ordre des avocats) preside ao conselho da ordem, mas não é membro desse mesmo órgão. Aliás, se estendermos a comparação à organização dos arquitectos franceses, veremos que a representação da ordem é confiada ao presidente de um órgão colegial e não a um órgão uninominal, equiparável à figura do bastonário da ordem dos advogados. [4]

Em todo caso, é forçoso reconhecer que o conselho directivo nacional não deixa de estar sujeito a uma certa deriva presidencialista. Em Portugal, dado o fascínio exercido pelos títulos nobiliárquicos, as ordens que congregam os profissionais liberais gostam de ser chefiadas por bastonários [5]. A excepção à regra são justamente os arquitectos que, a exemplo de França, preferem ser dirigidos por um órgão colegial e não por uma figura que, dada a idiossincrasia da profissão, pode rapidamente resvalar para o perfil de prima dona.

Nesta perspectiva, os receios da lista A relativamente à hipótese de um presidente da ordem travestido de bastonário têm a sua razão de ser, tanto mais que a contestação dos estatutos da ordem por parte de Manuel Vicente não deve ser dissociada de um momento político caracterizado pelo elogio de modelos robustas para a direcção democrática das mais diversas instituições.


F.
Os arquitectos comunistas estão cientes dos riscos que correm ao atacar a lista A?

Até agora, os partidos políticos não têm interferido directamente nas eleições para os órgãos das associações públicas profissionais. Concretamente, no caso dos arquitectos esta regra de convivência tenha sido mantida sem quebra. Assim, compartilho o espanto de Tiago Mota Saraiva quando este membro do conselho directivo nacional cessante depara com uma excepção à referida regra:
Não sei se pela primeira vez, o PCP entendeu, de uma forma pública e clara, apelar a que todos os arquitectos intervenham na Ordem dos Arquitectos para "libertar a OA da estreita teia de interesses particulares em que alguns dirigentes a foram fechando". /30/

Contudo, não me deixo entusiasmar pelo apelo a uma acção libertadora que treslê os papéis desempenhados pelos actores em confronto. Atendendo ao seu comportamento e lendo o seu programa, tenho receio que Manuel Vicente esteja empenhado em reconfigurar a ordem de acordo com um modelo presidencialista, em cujo topo possa assentar arraiais. Ora, se tal receio tem fundamento, este será o momento menos conveniente para o PCP oferecer à lista C a sua camaradagem política, mesmo que apenas por exclusão de partes.

Veja-se o que se passa na Assembleia da República. Todos os dias os deputados comunistas fustigam o governo de José Sócrates e a sua vontade de presidencializar as estruturas democráticas que gerem o quotidiano dos cidadãos. O tema está na ordem do dia com os projectos de lei respeitantes às autarquias locais, ao estatuto da carreira docente, à gestão dos serviços de saúde, etc.

No seu comunicado, o PCP não dá “qualquer crédito” à lista A e atira-a para o sótão da história, afirmando que a sua eleição foi mais um momento do “velho ciclo”. Mas, de um ponto de vista político, não será este um gesto mais melodramático do que clarividente? Digo isto porque, até agora, a lista A é a única que se propõe combater, de uma forma clara e sem ambiguidades, as tentativas de presidencialização da ordem, o que parece vir ao encontro daqueles que defendem as formas colegiais de exercício do poder político.


G.
Manuel Vicente merece a razão que o tribunal lhe deu
?


Manuel Vicente ambiciona “uma presidência exercida como magistratura de influência e de direcção política e em colegialidade” /35/. Registo a imagem da “magistratura de influência”, uma expressão habitualmente reservada para o Presidente da República, a quem muitos se referem como o “supremo magistrado da Nação”.

As palavras não são inócuas e, neste caso, apontam para um cargo um grau de exigência tão elevado que poucos são capazes de alcançar. Para alguém exerecer uma magistratura de influência é necessário ter dado provas da sua capacidade de servir o interesse público, ou seja, no caso da ordem, da sua capacidade de servir a arquitectura enquanto interesse público. Haverá quem pense que isso se confunde com a capacidade de praticar a arquitectura e de ser reconhecido como um bom arquitecto ou como um arquitecto de nomeada. Na realidade, as coisas não são tão simples, nem tão evidentes. Muitas vezes, o arquitecto-eleito tem de abdicar da actividade de projecto para poder defender a arquitectura nos fóruns em que se preparam as políticas públicas que, directa ou indirectamente, promovem ou degradam a qualidade arquitectónica. Em vez de inovar tem de repetir, vezes sem conta, os mesmos argumentos. Em vez de desenhar edifícios tem de fazer inquéritos, escrever relatórios e discutir pareceres. Em suma: em vez de fazer trabalho criativo tem de fazer trabalho burocrático, algo a que qualquer arquitecto bem formado tem um verdadeiro horror...

O íngreme caminho que conduz à tal magistratura de influência passa necessariamente pelos lugares inóspidos acima descritos e nem todos têm pachorra para dedicar o seu tempo a tarefas tão enfadonhas. Ora, ao cabo de dois mandatos como vice-presidente do conselho directivo nacional, em que medida Manuel Vicente contribuiu para a afirmação das políticas públicas de arquitectura prosseguidas pela ordem? Não é facil de responder a esta pergunta, embora uma coisa seja certa: esse contributo, a ter existido, não foi veiculado pelo conselho, uma vez que Manuel Vicente faltou repetida e impunemente às reuniões do órgão para o qual foi eleito.

Os estatutos de qualquer agremiação de bairro sujeitam os eleitos ao cumprimento de deveres destinados a assegurar o regulat funcionamento dos seus órgãos executivos. Se estes não se reúnem, o ritmo da vida da agremiação abranda, correndo o risco de parar de todo. Para prevenir tal eventualidade, os estatutos costumam prever a demissão dos faltosos às reuniões. Os arquitectos eleitos também estão sujeitos à tentação de faltar à reuniões. No caso de França, por exemplo, o regulamento interno da ordem dos arquitectos prevê que:
Tout membre du conseil national qui, sans motif, néglige d'assister à trois séances consécutives peut être démis de son mandat sur décision du conseil, après avoir été mis en mesure de présenter ses observations. [»]

Em bom rigor, Manuel Vicente deveria ter sido afastado da ordem antes de a demandar em tribunal. A ordem, de brandos costumes, não quis enxovalhar o nome de Manuel Vicente e deixou que ele completasse o seu mandato sem o demitir. A paga que a ordem recebeu por este gesto de magnanimidade foi ter sido arrastada para o tribunal, por um Manuel Vicente cioso dos seus direitos individuais e mal lembrado dos seus deveres para com os colegas que o elegeram...

Felizmente, há mais vida para além da letra da lei que os tribunais são obrigados a aplicar. O tribunal reconheceu a razão de Manuel Vicente. Mas não basta ter razão; é preciso merecê-la. E a ordem certamente não vai reconhecer o merecimento de um Manuel Vicente demasiado ausente, quando se tratava de cumprir os seus deveres para com os outros arquitectos, e demasiado presente, quando se tratava de exigir, aos outros arquitectos, o respeito pelos seus direitos individuais.



Sugestões

No termo desta mensagem deixo duas sugestões na esperança de que sejam acolhidas pelo próximo conselho directivo nacional, seja qual for a lista candidata que vier a ganhar as próximas eleições.


A.
Inquérito à actuação do conselho directivo nacional e da comissão eleitoral cessantes

Da conjugação dos factos que se encontram dispersos pela NET resulta a impressão de que alguns membros do conselho directivo nacional cessante actuaram como uma espécie de estado maior da lista C, influindo decisivamente na logística, na estratégica e na táctica da candidatura de Manuel Vicente.

Importa esclarecer se esta leitura dos acontecimentos é, ou não, confirmada por quaisquer factos relevantes que ainda não vieram a lume. Eventualmente está em causa uma questão manifestamente delicada, qual seja a de alguns eleitos com poderes de direcção terem desenvolvido acções destinadas a favorecer um candidato. A verificar-se tal hipótese, estaremos perante um típico abuso do poder político.

Entretanto, partindo do princípio de que nem todos os membros do conselho participaram no favorecimento da lista C, importa dar-lhes a oportunidade de testemunhar o modo como actuaram no decurso do período entre o anúncio das candidaturas, em Julho/Agosto, e realização do acto eleitoral, em meados de Outubro do ano passado.

As mesmas considerações são aplicáveis aos membros da comissão eleitoral e, em especial, aos membros da mesa da assembleia geral. Neste último caso, há que reparar o bom nome dos que, por força das circunstâncias, se sentiram obrigados a impedir a candidatura de Manuel Vicente e que, por isso mesmo, se tornaram o alvo fácil de todos aqueles que, por desconhecimento, cálculo, ingenuidade ou má fé, estão dispostos a silenciar os estatutos no ponto em que estes limitam a premanência de eleitos à frente de orgãos directivos.

O conselho directivo nacional saído das próximas eleições deve pois constituir uma comissão de inquérito, formada por individualidades não directamente envolvidas nos actos eleitorais, tendo por missão apurar os factos ainda não revelados, recolher os testemunhos de quem desejar contribuir para o cabal esclarecimento do processo eleitoral e retirar, de todos estes dados, os ensinamentos que se afigurem úteis para o futuro da ordem.


B.
Regimento interno do conselho directivo nacional

A decisão do tribunal que determinou a repetição do acto eleitoral e, de uma forma geral, a polémica em torno de elegibilidade de Manuel Vicente minaram a confiança dos arquitectos na solidez dos estatutos da sua ordem.

Se mais razões não existissem, a necessidade de restaurar essa confiança justificaria a revisão dos estatutos, designadamente em termos de garantir o carácter colegial dos órgãos directivos. Contudo, como sabemos por experiência, essa revisão é um processo complexo, arrastado no tempo e incerto nos seus resultados.

Assim, importa dar um sinal imediato de que os arquitectos desejam ser dirigidos, não por um magistrado com alta capacidade de influência (tipo bastonário), mas sim por um órgão efectivamente colegial, capaz de reflectir as diversas sensibilidades presentes no actual exercício da arquitectura e em que cada um dos membros desse colégio tenha uma quota-parte de poderes e de responsabilidades clara e publicamente definida.

Nesse sentido, e sem prejuízo de outras iniciativas, julgo que o próximo conselho directivo nacional deverá dotar-se de um regimento interno destinado a disciplinar o seu funcionamento, sem esquecer a penalização dos eleitos que faltam sistematicamente às reuniões do conselho, ou seja, que se colocam constante e comodamente fora da ordem.



Notas


[1] - Agradeço a Pedro Brandão por me ter relembrado estes episódios.


[2] - Segundo parágrafo do artigo 24.º da Loi 77-2, du 3 Janvier 1977, sur l'architecture, na redacção dada pela Ordonnance 2005-1044, du 26 août 2005, relative à l'exercice et à l'organisation de la profession d'architecte. [»]

[3] – A propósito do fascínio pelos títulos nobiliárquicos, registo aqui um pormenor curioso: na NET, as únicas ocorrências da expressão francesa bâtonnier de l’ordre des architectes (bastonário da ordem dos arquitectos) provém de dois países lusófanos: Angola [»] e Portugal [»].

[4] - As bases da organização dos arquitectos franceses encontram-se na Loi 77-2, du 3 Janvier 1977, sur l'architecture, que não menciona o cargo de presidente e apenas se refere aos conselhos nacional e regionais da ordem:
Article 24
Il est institué un conseil national de l'Ordre des architectes. Le ministre chargé de la culture désigne auprès de lui un représentant qui assiste aux séances.
[...]
Article 25
Le Conseil National coordonne l'action des Conseils Régionaux et contribue à leur information.
Il est consulté par les pouvoirs publics sur toutes les questions intéressant la profession, notamment l'organisation de l'enseignement de l'architecture.
Article 26
Le Conseil National et le Conseil Régional de l'Ordre des architectes concourent à la représentation de la profession auprès des pouvoirs publics.
Ils ont qualité pour agir en justice en vue notamment de la protection du titre d'architecte et du respect des droits conférés et des obligations imposées aux architectes par la présente loi.
Ils peuvent concourir à l'organisation de la formation permanente et de la promotion sociale et au financement d'organismes intéressant la profession.

[5] - Fora da ordem dos advogados podemos considerar imprópria a utilização do termo bastonário dado que às primeiras figuras de outras ordens falta-lhes a competência para, em tribunal, defender as respectivas associações profissionais.

17 de janeiro de 2008

Ota congelada pelo Estado

Reflexão sobre as indemnizações devidas
por medidas preventivas extraordinárias


Meu Deus! A arte é longa e curta é a nossa vida.
Goethe, Fausto
[»]




No dia 10 de Janeiro de 2008, o Primeiro-Ministro, José Sócrates, anunciou a escolha do Campo de Tiro de Alcochete para a localização do NAL, Novo Aeroporto de Lisboa, acrescentando que a decisão do Governo só será definitiva após a avaliação ambiental estratégica dos seus efeitos. Este anúncio veio amainar a polémica desencadeada em 22 de Novembro de 2005 pelo mesmo Primeiro-Ministro, quando apresentou a Ota foi como o destino virtualmente inquestionável desse gigantesco equipamento público.

Serenados os ânimos, é agora possível discutir alguns aspectos de pormenor, situados à margem do magno problema da localização de um aeroporto internacional. Como é óbvio, planear, programar, e projectar um aeroporto de grandes dimensões não é tarefa de pequena monta e isso significa que, sem o concurso de uma bem delineada estratégia, estamos a lidar com um empreendimento que pode tropeçar a qualquer momento. Aparentemente, o NAL acaba de dobrar o Cabo das Tormentas, pelo que a ameaça de uma prostração repentina parece afastada, pelo menos por agora. No entanto, convém não esquecer que a sua localização se arrasta, por entre dúvidas e certezas, com altos e baixos, desde o início dos anos 60. Assim, a prudência impõe-se como palavra de ordem, tanto mais que, como fomos avisados, a deslocação aeroporto da Ota para o Campo de Tiro de Alcochete não deve ser encarada como uma decisão inabalável.

Para não complicar o nosso raciocínio e sem esquecer a anterior advertência, a presente mensagem parte do princípio que o NAL vai efectivamente ser construído no Campo de Tiro, junto à pequena povoação de Canha, no concelho de Alcochete. Se assim for, sou tentado a afirmar que, ao cabo de quarenta e cinco anos, a tecnoburocracia portuguesa não apenas demonstrou estar indisponível para debater os seus diktats, como também se revelou como uma entidade supinamente ineficiente e ineficaz. Revelou-se ineficiente porque os portugueses desembolsaram um ror de dinheiro para justificar que o NAL se afastasse uns escassos treze quilómetros e meio em relação ao local que originalmente lhe foi destinado no Plano Director da Região de Lisboa, de 1964. Revelou-se ineficaz porque os tecnoburocratas, apesar de manipularem os meios necessários e suficientes para calar as vozes recalcitrantes, não foram capazes de colocar o Governo ao abrigo de uma solução ditada pelo bom senso e gerada no seio da sociedade civil.

Plano Director da Região de Lisboa (Anteplano, 1964), com as localizaçõs
do NAL em Rio Frio (R-F), na Ota (OTA) e no Campo de Tito de Alcochte (ALC)



Para os que desejam o aprofundamento da democracia participativa, o momentâneo desnorte de um planeamento autoritário, centralizado e críptico constitui uma excelente oportunidade para pôr a nu os abusos cometidos pelos tecnoburocratas, ainda por cima pagos à nossa custa. A tanto se propõe a presente mensagem, tomando por referência as questões suscitadas pelas medidas preventivas previstas na Lei dos Solos e pela inexistência de um preceito legal que obrigue o Estado a indemnizar os proprietários afectados por sucessivos prorrogamentos dessas mesmas medidas.


Medidas preventivas


No âmbito nacional e no caso de empreendimentos da iniciativa do Estado, o recurso a medidas preventivas encontra-se previsto na “lei dos solos” [Decreto-Lei n.º 794/76, de 5 de Novembro, que substituiu o Decreto-Lei n.º 576/70, de 24 de Novembro] [»].

Nos termos da referida lei, o Governo pode estabelecer, por decreto, que uma área que se presuma vir a ser abrangida por um projecto de empreendimento público seja sujeita a medidas preventivas, destinadas a evitar alteração das circunstâncias e condições existentes que possa comprometer a execução do empreendimento ou torná-la mais difícil ou onerosa [art. 7.º, n.º 1].

As medidas preventivas podem consistir na proibição ou na sujeição a prévia autorização, eventualmente condicionada, de diversos actos ou actividades, designadamente: (a) a criação de novos núcleos populacionais, (b) a construção, reconstrução ou ampliação de edifícios ou outras instalações, (c) a instalação de explorações ou ampliação das já existentes, (d) a alteração, por meio de aterros ou escavações, à configuração geral do terreno, (e) o derrube de árvores em maciço e (f) a destruição do solo vivo e do coberto vegetal [art. 8.º, n.º 1].

O prazo de vigência das medidas preventivas é fixado no diploma que as estabelece, até dois anos, sem prejuízo, porém, da respectiva prorrogação, quando tal se mostre necessário, por prazo não superior a um ano [art. 8.º, n.º 1].

Finalmente, e esse é o aspecto que aqui interessa discutir, a lei dos solos estabelece que a imposição das medidas preventivas não confere a qualquer indemnização
[art. 11.º].


Concelhos congelados

Antes de entrar na questão da indemnização devida por medidas preventivas extrordinárias, convém tomar o pulso aos interesses fundiários e imobiliários presentes na vizinhança dos terrenos anteriormente destinados ao “aeroporto da Ota” e retratar o ânimo dos portadores desses mesmos interesses. Por banda dos municípios, retenho a parte conclusiva da moção aprovada pela Assembleia Municipal de Alenquer, em 28 de Junho de 2007, e entregue aos órgãos de soberania, com o objectivo de:

1. - Dar conhecimento ao senhor Presidente da República, à Assembleia da República e ao Governo, das apreensões que subsistem relativamente aos graves prejuízos causados à população do concelho de Alenquer, em particular os resultantes da prolongada reserva territorial de uma significativa parcela do território concelhio [destinada ao NAL], bem como das implicações na definição de uma estratégia de desenvolvimento de um concelho em processo de revisão do seu Plano Director Municipal, que a “indefinição” ora introduzida no processo vem acentuar negativamente;
2. - Manifestar aos mesmos que tudo temos suportado em prol de um projecto de interesse nacional, e mesmo europeu, alimentados pela expectativa de que o desenvolvimento a vir a ser induzido no nosso concelho pela instalação do NAL em Alenquer/Ota, venha afinal a compensar Alenquer e os alenquerenses pelos prejuízos entretanto já sofridos, bem como pelos impactos negativos próprios do funcionamento de semelhante infra-estrutura, os quais já hoje intuímos e que a seu tempo se revelarão;
3. - Não aceitar que, concluído este processo, seja qual for o seu desfecho, o concelho de Alenquer não venha a ser ressarcido dos manifestos prejuízos que estão a ser causados ao seu desenvolvimento. [»]

Para completar o leque dos órgãos de soberania, resta apenas acrescentar que, desde Setembro passado, as Câmaras Municipais de Alenquer e Azambuja, ambas dirigidas por eleitos do Partido Socialista, admitem processar o Estado no caso de o Governo optar pela construção do novo aeroporto em Alcochete, alegando que as restrições à urbanização e à construção impostas nos respectivos concelhos estão a causar prejuízos insuportáveis [»]. Aliás, o presidente de Alenquer, Álvaro Pedro, afirma abertamente que tem «aconselhado os empresários dos loteamentos a recorrer às vias judiciais», acrescentando que cerca de 600 projectos sujeitos a licenciamento municipal receberam parecer negativo devido ao NAL.

Implantação prevista para o NAL na Ota
Fonte: Comissão Local de Acompanhamento do Processo
do Novo Aeroporto de Lisboa, Freguesia do Carregado [»]


Terrenos e loteamentos congelados

A fazer fé nos testemunhos divulgados pelos meios de comunicação social, os proprietários de imóveis sitos na Ota não estão particularmente desesperados com a fuga do NAL para Alcochete, mas exigem a reparação dos prejuízos sofridos pelo congelamento dos seus terrenos. António Varela, tido por um dos maiores proprietários, é dono de terrenos nos concelhos de Alenquer, Azambuja e Vila Franca de Xira, alguns deles sujeitos a medidas preventivas. Este empresário está à frente da Tiner, uma construtora portuguesa que se especializou nos serviços prestados a empresas logísticas (mais de 500.000 m2 de imóveis incorporados no âmbito europeu) e que opera no mercado de habitação brasileiro, onde tem em construção a Vila Atlântica, um mega-condomínio para 20.000 habitantes. Posto isto, vale a pena conhecer os pontos de vista expostos à Lusa pelo presidente da TINER:

«Sinto-me penalizado, tal como os restantes proprietários. Não sei o que o Governo pode fazer para remediar a situação, mas era preciso que algo fosse feito para compensar os prejuízos causados», salientou o empresário, engenheiro civil de formação.
Para António Varela, «os proprietários que compraram terrenos para onde estão definidos usos industriais ou outros e não puderam avançar com os seus projectos devem ser compensados, porque tudo ficou congelado».
Ao mesmo tempo, o responsável do Grupo Tiner sente-se «aliviado» por haver finalmente uma decisão e espera poder agora avançar rapidamente com os projectos que ficaram «congelados».
Entre estes incluem-se áreas comerciais (retails e outlets), centros de distribuição logística, um
lote para 34 moradias e um empreendimento turístico com golfe e hotelaria.
«Espero que se revoguem imediatamente as restrições», frisou. [»]

Vila Atlântica, São Paulo
Antevisão do condomínio (48 torres e 5.180 apartamentos)
e imagem do seu construtor, António Varela
Fonte: ISTOÉDINHEIRO [»]

O presidente da TINER acrescentou que a compensação poderia passar pela redução de taxas e impostos sobre o desenvolvimento imobiliário e a construção, tendo manifestado a esperança de poder avançar rapidamente com projectos “congelados” há uma década.

Note-se, de passagem, que as mesmas declarações, publicadas no site do Diário Económico, suscitaram oito comentários, todos eles pouco favoráveis aos pontos de vista do empresário. António Varela merece ser qualificado como «mais um ladrão analfabeto deste país que tem a mania que é esperto», uma forma elogiosa ditada pela inveja com que, entre nós, são olhados os empresários de sucesso. Mais grosso é outro comentarista que, sob o mote «apareceu um dos bichos!», dá mostras de uma incontida euforia ao ver confirmadas as suas suspeitas: «a gente sabia que eles estavam encafuados na toca, só a enxurrada os fez meter finalmente a cabeça de fora...» . Em todo caso, este eufórico contentamento é mitigado por uma dúvida existencial: «quem serão os outros???». [»]

Não vale a pena perder muito tempo com este tipo de reacções. Se aqui as cito é apenas para dar algum colorido à ideia de que o grande público encara a urbanização como um meio misterioso (a toca) e turbulento (como prever o comportamento de um bicho?), talvez favorável ao rodopio de grandes tubarões, mas por certo pouco propício à sobrevivência dos peixes-palhaço que nele se arriscam a aventurar. A platitude destes tropos facilita a sua difusão e, em última análise, criam uma atmosfera pouco favorável àqueles que, na véspera da grande decisão do Governo, pareciam estar nas melhores condições de desfrutar das primícias devidas à construção do aeroporto na Ota: os proprietários fundiários e os promotores imobiliários...


Indemnizar ou não indemnizar?

Se bem leio nas entrelinhas, a pressão de uma opinião pública pouco favorável ao pagamento de indemnizações aos proprietários aflora nas seguintes passagens da entrevista concedida pelo Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, ao semanário Expresso:

Cristina Figueiredo: Há compensações para a zona da Ota?
Mário Lino:
É um problema. As populações de Alenquer, Vila Franca e Azambuja tiveram os terrenos com restrições de utilização durante 10 anos. É legítimo que se sintam defraudadas. Temos de encontrar uma forma de conseguir contributos positivos para o desenvolvimento desta zona. E estamos disponíveis para o analisar.
E os proprietários?
Não se trata de indemnizações aos proprietários. Assim que desbloquear o processo a primeira coisa que vou fazer é levantar essas medidas restritivas. [»]

O laconismo das anteriores respostas não permite captar o pensamento do ministro no que respeita às indemnizações devidas pela imposição de medidas preventivas extraordinárias. Pelos vistos, o ministro antevê a distribuição de equipamentos sociais como uma forma de promover o desenvolvimento e de contrariar o decréscimo do valor do solo devido ao esfumar do prometido aeroporto internacional. Para tanto, conta provavelmente com o Programa Operacional Temático Valorização do Território [»], uma das componentes do QREN, Quadro de Referência Estratégico Nacional, para o período 2007-2013.

O acenar de um pingue programa de equipamentos sociais talvez seja suficiente para contentar os municípios directamente afectados pela retirada do NAL. Mas, quanto aos proprietários dos terrenos? As compensações sob a forma de equipamentos não devem ser encaradas como uma forma indemnização dos proprietários, uma vez que se destinam generica e indiscriminadamente a todos os habitantes dos municípios. Ora, se as compensações não substituem as devidas indemnizações, será que estas irão ser pagas? A dúvida fica a pairar no ar, uma vez que Mário Lino apenas se compromete a fazer cessar a vigência das medidas preventivas logo que a solução Alcochete estiver em ordem de marcha.

Para adensar um pouco mais o mistério, sucede que as questões suscitadas pelas medidas preventivas, incluindo o ressarcimento dos sacrifícios devidos ao congelamento dos terrenos da Ota, não figuram nem o relatório do LNEC [»], nem os relatórios sectoriais que lhe foram anexados. Embora a distribuição territorial dos grandes equipamentos sociais e a aplicação dos mecanismos facultados pela lei dos solos constituam instrumentos essenciais da organização do território nacional, a verdade é que as referidas questões não figuram no anexo consagrado ao ordenamento do território [»]. O mesmo sucede no caso do anexo dedicado ao desenvolvimento económico e social [»]. Entretanto, no anexo em que são contabilizados custos financeiros [»] aborda-se a questão das indemnizações, mas estas referem-se essencialmente aos custos de expropriação, o que não é o aspecto que aqui nos interessa. Um dos anexos procede a uma análise custo-benfício, sem deter a sua atenção nos aspectos que aqui nos interessam [»]. Finalmente, o estudo jurídico anexado ao relatório do LNEC incide apenas sobre alguns aspectos ambientais relevantes para a localização do NAL [»], entre os quais obviamente não se inclui a questão das indemnizações.


Um planeamento paralizante

Das indemnizações devidas por medidas preventivas que se arrastaram por dez longos anos fala-se a meia voz. Mas daí não retiro a ideia de que o assunto está enredado numa cabala conspirativa. De tal forma estamos habituados à natureza paralizante do planeamento urbano que já nem notamos esse defeito. E, se todos nós estamos condenados a refrear o passo para cumprir os rituais impostos pela excelsa hierarquia que governa o nosso território, ninguém se sente especialmente escandalizado quando depara com mais um caso em que a sociedade civil é confundida e enganada por serviços públicos que, em princípio, existem para esclarecer e ajudar os cidadãos.

O despertar da consciência para esta vil condição só ocorre de tempos a tempos, quando, por oportunidade política, alguém capaz para fazer ouvir a sua voz chama a atenção para as águas estagnadas do nosso urbanismo. Apenas dois exemplos dessas ocasiões que só pecam por singulares. O primeiro situa-se nos finais dos anos 40, no momento em que arranca o progama urbanístico gizado por Duarte Pacheco. Discursando na Assembleia Nacional, o deputado Paulo Cancela de Abreu traça o seguinte panorama:

Sr. Presidente: não tive antes e não temos hoje tempo para ocupar-nos desenvolvidamente do assunto a que vou referir-me. Por isto têm de ser forçosamente resumidas as minhas considerações. Trata-se dos planos de urbanização de que já se ocupou há mais de um ano o ilustre Deputado Albano de Magalhães. [...]
As demoras na elaboração destes planos estão a retardar muitos empreendimentos em numerosos concelhos do País e a fazer esmorecer as suas energias criadoras. Cito como exemplo o distrito de Aveiro, para o qual foram mandados elaborar 15 planos de urbanização e apenas um definitivo foi entregue até à presente ocasião. E apenas 6 aguardam a planta topográfica.
De 259 planos adjudicados, apenas 27 foram aprovados e 37 estão em apreciação. Os restantes encontram-se há muito tempo em poder dos arquitectos urbanistas, e é limitado a 44 o número dos que aguardam as plantas topográficas.
Diz a informação que os técnicos são poucos e o seu trabalho muito. Por isto, os há que além das outras ocupações têm a seu cargo 10, 15 e mais planos e nada ou pouco têm feito!
Acresce que o decreto de 1944, regulador do assunto, diploma sem dúvida notável, contém exigências que a técnica recomenda, mas têm colocado as câmaras municipais em grandes apuros, nomeadamente quando se trata de responder aos questionários que ele impõe. Daí serviços do Ministério terem-se visto na necessidade de acudir em seu auxílio.
Aquelas, estas e outras apontadas pelo Sr. Ministro, a que se procura dar remédio, são as causas primeiras da demora que está prejudicando os municípios e os munícipes.
A falta dos planos de urbanização paralisou inúmeros empreendimentos locais, transacções sobre prédios, construções, etc., o que tudo está dificultando o progresso das vilas e a solução do seu problema da habitação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas não é só isto.
Na província, como em Lisboa, muitos terrenos e edifícios estão como que congelados por expropriação iminente ou resolvida que não se executa, ou sob ameaça ou receio dela, que não se efectivam. Disto resultam prejuízos incalculáveis, provenientes de como disse, não se poder construir prédios nem ampliá-los ou transformá-los, nem vender, como tantas vezes é indispensável e urgente por motivo de necessidade económica dos proprietários ou para fins de partilha inadiável, etc. E a sua desvalorização é manifesta, em consequência da incerteza do seu destino.
[Diário das Sessões da Assembleia Nacional, n.º 166, de 1 de Maio de 1948: p. 660-661]

Passados sessenta anos, a lentidão com que nascem os nossos planos urbanísticos continua a constituir motivo de queixa. No novo exemplo, a diferença em relação ao anterior reside no facto de o autor do desabafo já não é um deputado, mas sim um primeiro-ministro. Discursando na Assembleia da República, José Sócrates eulogia o Simplex, o programa que "veio questionar rorinas burocráticas instaladas", e perspectiva a sua entrada no domínio do licenciamento municipal dos trabalhos de contrução:

O Orador: — Sei bem que esta é uma tarefa sem fim, que exige continuidade e persistência — tal como sei que não podemos, nem devemos, abrandar o ritmo das mudanças de que o País precisa. É justamente por isso que trago hoje a debate, neste Parlamento, a reforma e a simplificação dos processos de licenciamento e de planeamento territorial.
Para alguns, estas palavras poderão, porventura, dizer pouco, mas não tenhamos dúvidas: a reforma do licenciamento e do planeamento é central para o dinamismo das actividades económicas, para a competitividade da nossa economia e fundamental para o desenvolvimento do País.
A reforma que o Governo vai promover assenta na revisão do regime jurídico de quatro pilares fundamentais: os instrumentos de gestão territorial; o regime da urbanização e edificação ao nível municipal; a criação de um regime jurídico especial para os projectos de importância estratégica (PIN); e, finalmente, a revisão do licenciamento das actividades económicas.
O Sr. José Junqueiro (PS): — Muito bem!
O Orador: — A situação que se vive hoje com o nosso sistema de planeamento da gestão do território, pura e simplesmente, não pode continuar.
O Sr. Alberto Martins (PS): — Muito bem!
O Orador: — Todos sabemos que a revisão de um PDM pode arrastar-se, penosamente, por mais de uma década e que um plano de urbanização ou um simples plano de pormenor podem demorar uma boa meia dúzia de anos, desde o início até à ratificação pelo Conselho de Ministros. Pelo caminho, sucedem-se — e às vezes contradizem-se — as mais diversas «entidades competentes»; multiplicam-se e sobrepõem-se os controlos administrativos; oscilam as vontades políticas e, inevitavelmente, desesperam os cidadãos e, tantas vezes, desistem das empresas.
É por isso que temos de mudar — e mudar radicalmente!!
[Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 77, de 28 de Abril de 2007: pp. 5-6
]

Eufemisticamente apelidados de entidades competentes entre aspas, os burocratas que pontificam nos serviços técnicos do Estado são criticados por José Sócrates com a veemência de um líder da oposição, como se o primeiro-ministro ignorasse que o aparelho do Estado está sujeito ao poder de condução do governo a que preside. Que esta troca de papéis ocorra perante uma oposição estupefacta só abona em favor da extraordinária resiliência da tecnoburocracia portuguesa e da sua admirável capacidade em absorver os choques adversos que a vão atingindo.


O engodo das normas provisórias

Perante a actuação dos serviços públicos que tutelam — e emperram — a acção de planeamento dos municípios e actividade construtiva dos particulares, alguém menos avisado poderá sugerir que se disciplinem esses serviços, obrigando-os a cumprir normas que garantam a celeridade dos procedimentos administrativos. Ao fim e ao cabo, dirão os mais confiantes nesta receita, trata-se de seguir as pisadas da antiga medicina e a aproveitar a peçonha causadora da doença, transformando-a num fármaco com capacidades curativas.

No caso do nosso urbanismo, as tentativas de pôr em prática o anterior expediente nem sempre têm resultado. A lei bem pode determinar a aprovação de normas moderadoras da arbitrariedade dos serviços do Estado: a concretização desse comando estará sempre dependente da diligência com esses mesmos serviços conceberem as referidas normas. Ora, como é compreensível, as direcções-gerais têm uma grande dificuldade em auto-limitarem os seus poderes.
A génese das medidas preventivas previstas na lei de solos de 1970 é disso um bom exemplo. Entre os seus antecedentes figura a lei que estabeleceu as bases da elaboração e da aprovação do Plano Director do Desenvolvimento Urbanístico da Região de Lisboa, abreviadamente designado por PDRL, Plano Director da Região de Lisboa. A base V do respectivo projecto de lei, da iniciativa do Ministro das Obras Públicas, Eduardo de Arantes e Oliveira, dispunha que:

1. - Na área abrangida pelo Plano Regional de Lisboa e até à aprovação deste, carecem de prévia autorização do Ministro das Obras Públicas, ouvidas a respectiva Câmara Municipal e a Comissão do Plano Regional de Lisboa:
a) - A criação de novos núcleos populacionais e a construção, reconstrução ou ampliação de instalações industriais de 1." ou 2." classes, quando, num e noutro caso, se situem fora das zonas para esse efeito previstas nos planos de urbanização legalmente aprovados;
b) - A exploração de novas pedreiras ou a ampliação das que estejam sendo exploradas à data da presente lei e, bem assim, a execução de terraplanagens importantes de qualquer natureza susceptíveis de alterar a configuração geral do terreno e o derrube de árvores em maciço de área superior a um hectare;
2. - Fica igualmente sujeita à prévia autorização do Ministério das Obras Públicas, por intermédio da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização e mediante parecer da respectiva Câmara Municipal, a construção de novas edificações nos aglomerados existentes, quando situadas fora dos seus perímetros actuais ou das zonas de expansão definidas nos planos de urbanização legalmente aprovados.
3. - As autorizações serão negadas sempre que se verifique que da sua concessão poderá resultar inconveniente para a execução futura do Plano Regional.
[Diário das Sessões da Assembleia Nacional, n.º 166, de 1 de Maio de 1948: p. 660-661]





Privilégios da Costa do Sol

O mesmo artigo 5.º após a discussão na Assembleia Nacional e negociação com o Ministro Duarte Pacheco:

Artigo 5.º - [Planos parciais e reserva de terrenos e edifícios]
Durante a elaboração do Plano de Urbanização e até à sua aprovação definitiva, poderá o Governo aprovar planos parciais respeitantes a vias públicas, praças, parques e campos de jogos, e determinar que sejam reservados os terrenos e construções necessários para garantir a possibilidade futura de execução do Plano.
§ 1.º — Nas construções ou terrenos reservados não poderão ser feitas, a partir da data da aprovação do Plano ou planos parciais, quaisquer obras que não representem benfeitorias absolutamente indispensáveis à sua conservação.
§ 2.º — A reserva das construções e terrenos necessários à execução do Plano não determina a sua expropriação imediata, no todo ou em parte, nem, se esta se fizer no prazo assinado no Plano, o pagamento de quaisquer indemnizações aos proprietários, a título de perdas e danos, salvo o disposto no parágrafo seguinte.
§ 3.º — Os proprietários das construções e terrenos reservados têm o direito de requerer, depois da aprovação do Plano, mas antes de findo o respectivo prazo, que sejam feitas as expropriações; neste caso, tais construções e terrenos entrarão imediatamente na posse do expropriante, que, até ao pagamento do valor da expropriação, assegurará aos expropriados, em cada ano, uma indemnização igual ao juro daquele valor, calculado pela taxa de desconto do Banco de Portugal.
§ 4.º — A reserva caducará se, no prazo de dois anos, a contar da sua data, não forem aprovados os planos relativos aos terrenos e construções que compreende.









Referências

[«] – Ach Gott! Die Kunst ist lang, und kurz ist unser Leben. Johann Wolfgang Goethe, Faust I, 558-559.

[«] – Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 143, de 6 de Julho de 2006: pg. 6545.
http://debates.parlamento.pt/page.aspx?cid=r3.dar

[«] – António Lemonde de Macedo & Eduarda Beja Neves, coord. (2008), Estudo para Análise Técnica Comparada das Alternativas de Localização do Novo Aeroporto de Lisboa na Zona da Ota e na Zona do Campo de Tiro de Alcochete – 2ª Fase - Avaliação comparada das duas localizações. Estudo realizado para o Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações (Relatório 2/2008 – DT, Janeiro de 2008). Lisboa, LNEC, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Departamento de Transportes. [»]

[«] – Jorge Gaspar, coord. (2007), Estudo para Análise Técnica Comparada das Alternativas de Localização do Novo Aeroporto de Lisboa na Zona da Ota e na Zona do Campo de Tiro de Alcochete: Domínio de Avaliação: Ordenamento de Território (Relatório da 2.ª Fase, Dezembro de 2007). Lisboa, CEDRU. [»]

[«] – Augusto Mateus (2007), Estudo para Análise Técnica Comparada das Alternativas de Localização do Novo Aeroporto de Lisboa na Zona da Ota e na Zona do Campo de Tiro de Alcochete – Domínio de avaliação: Competitividade e Desenvolvimento Económico e Social (Relatório Final, 3 de Dezembro de 2007). Lisboa, Augusto Mateus & Associados. [»]

[«] – João Luís Duque, coord. (2007), Avaliação Financeira das Alternativas de Localização para o Novo Aeroporto de Lisboa (Dezembro de 2007). Lisboa, ISEG, Instituto Superior de Economia e Gestão. [»]

[«] – José Gomes Canotilho & Alexandra Aragão (2007), Estudo Jurídico sobre Alguns Aspectos Ambientais Relevantes para a Localização do Novo Aeroporto de Lisboa (Novembro, 2007). S/local. [»]

[«] – Gualdim Silva Carvalho (2007), Alternativa de localização do Novo Aeroporto para a região de Lisboa –Análise da Servidão Aeronáutica (Superfícies Limitativas de Obstáculos do ANEXO 14, Cap. 4) – Alcochete. Lisboa, ANA, Aeroportos de Portugal, Divisão de Regulamentação e Licenciamento Aeronáutico. [»]

[«] - Elisabete Arsénio & José Pedro Pontes (2007), Estudo de Avaliação Comparada das Alternativas de Localização para o Novo Aeroporto de Lisboa na Zona da Ota e do CTA: Análise Custo-Benefício (Relatório Final, DT/NPTS) LNEC, Dezembro, 2007). Lisboa, LNEC, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Departamento de Transportes, Núcleo de Planeamento, Tráfego e Segurança. [»]