17 de janeiro de 2008

Ota congelada pelo Estado

Reflexão sobre as indemnizações devidas
por medidas preventivas extraordinárias


Meu Deus! A arte é longa e curta é a nossa vida.
Goethe, Fausto
[»]




No dia 10 de Janeiro de 2008, o Primeiro-Ministro, José Sócrates, anunciou a escolha do Campo de Tiro de Alcochete para a localização do NAL, Novo Aeroporto de Lisboa, acrescentando que a decisão do Governo só será definitiva após a avaliação ambiental estratégica dos seus efeitos. Este anúncio veio amainar a polémica desencadeada em 22 de Novembro de 2005 pelo mesmo Primeiro-Ministro, quando apresentou a Ota foi como o destino virtualmente inquestionável desse gigantesco equipamento público.

Serenados os ânimos, é agora possível discutir alguns aspectos de pormenor, situados à margem do magno problema da localização de um aeroporto internacional. Como é óbvio, planear, programar, e projectar um aeroporto de grandes dimensões não é tarefa de pequena monta e isso significa que, sem o concurso de uma bem delineada estratégia, estamos a lidar com um empreendimento que pode tropeçar a qualquer momento. Aparentemente, o NAL acaba de dobrar o Cabo das Tormentas, pelo que a ameaça de uma prostração repentina parece afastada, pelo menos por agora. No entanto, convém não esquecer que a sua localização se arrasta, por entre dúvidas e certezas, com altos e baixos, desde o início dos anos 60. Assim, a prudência impõe-se como palavra de ordem, tanto mais que, como fomos avisados, a deslocação aeroporto da Ota para o Campo de Tiro de Alcochete não deve ser encarada como uma decisão inabalável.

Para não complicar o nosso raciocínio e sem esquecer a anterior advertência, a presente mensagem parte do princípio que o NAL vai efectivamente ser construído no Campo de Tiro, junto à pequena povoação de Canha, no concelho de Alcochete. Se assim for, sou tentado a afirmar que, ao cabo de quarenta e cinco anos, a tecnoburocracia portuguesa não apenas demonstrou estar indisponível para debater os seus diktats, como também se revelou como uma entidade supinamente ineficiente e ineficaz. Revelou-se ineficiente porque os portugueses desembolsaram um ror de dinheiro para justificar que o NAL se afastasse uns escassos treze quilómetros e meio em relação ao local que originalmente lhe foi destinado no Plano Director da Região de Lisboa, de 1964. Revelou-se ineficaz porque os tecnoburocratas, apesar de manipularem os meios necessários e suficientes para calar as vozes recalcitrantes, não foram capazes de colocar o Governo ao abrigo de uma solução ditada pelo bom senso e gerada no seio da sociedade civil.

Plano Director da Região de Lisboa (Anteplano, 1964), com as localizaçõs
do NAL em Rio Frio (R-F), na Ota (OTA) e no Campo de Tito de Alcochte (ALC)



Para os que desejam o aprofundamento da democracia participativa, o momentâneo desnorte de um planeamento autoritário, centralizado e críptico constitui uma excelente oportunidade para pôr a nu os abusos cometidos pelos tecnoburocratas, ainda por cima pagos à nossa custa. A tanto se propõe a presente mensagem, tomando por referência as questões suscitadas pelas medidas preventivas previstas na Lei dos Solos e pela inexistência de um preceito legal que obrigue o Estado a indemnizar os proprietários afectados por sucessivos prorrogamentos dessas mesmas medidas.


Medidas preventivas


No âmbito nacional e no caso de empreendimentos da iniciativa do Estado, o recurso a medidas preventivas encontra-se previsto na “lei dos solos” [Decreto-Lei n.º 794/76, de 5 de Novembro, que substituiu o Decreto-Lei n.º 576/70, de 24 de Novembro] [»].

Nos termos da referida lei, o Governo pode estabelecer, por decreto, que uma área que se presuma vir a ser abrangida por um projecto de empreendimento público seja sujeita a medidas preventivas, destinadas a evitar alteração das circunstâncias e condições existentes que possa comprometer a execução do empreendimento ou torná-la mais difícil ou onerosa [art. 7.º, n.º 1].

As medidas preventivas podem consistir na proibição ou na sujeição a prévia autorização, eventualmente condicionada, de diversos actos ou actividades, designadamente: (a) a criação de novos núcleos populacionais, (b) a construção, reconstrução ou ampliação de edifícios ou outras instalações, (c) a instalação de explorações ou ampliação das já existentes, (d) a alteração, por meio de aterros ou escavações, à configuração geral do terreno, (e) o derrube de árvores em maciço e (f) a destruição do solo vivo e do coberto vegetal [art. 8.º, n.º 1].

O prazo de vigência das medidas preventivas é fixado no diploma que as estabelece, até dois anos, sem prejuízo, porém, da respectiva prorrogação, quando tal se mostre necessário, por prazo não superior a um ano [art. 8.º, n.º 1].

Finalmente, e esse é o aspecto que aqui interessa discutir, a lei dos solos estabelece que a imposição das medidas preventivas não confere a qualquer indemnização
[art. 11.º].


Concelhos congelados

Antes de entrar na questão da indemnização devida por medidas preventivas extrordinárias, convém tomar o pulso aos interesses fundiários e imobiliários presentes na vizinhança dos terrenos anteriormente destinados ao “aeroporto da Ota” e retratar o ânimo dos portadores desses mesmos interesses. Por banda dos municípios, retenho a parte conclusiva da moção aprovada pela Assembleia Municipal de Alenquer, em 28 de Junho de 2007, e entregue aos órgãos de soberania, com o objectivo de:

1. - Dar conhecimento ao senhor Presidente da República, à Assembleia da República e ao Governo, das apreensões que subsistem relativamente aos graves prejuízos causados à população do concelho de Alenquer, em particular os resultantes da prolongada reserva territorial de uma significativa parcela do território concelhio [destinada ao NAL], bem como das implicações na definição de uma estratégia de desenvolvimento de um concelho em processo de revisão do seu Plano Director Municipal, que a “indefinição” ora introduzida no processo vem acentuar negativamente;
2. - Manifestar aos mesmos que tudo temos suportado em prol de um projecto de interesse nacional, e mesmo europeu, alimentados pela expectativa de que o desenvolvimento a vir a ser induzido no nosso concelho pela instalação do NAL em Alenquer/Ota, venha afinal a compensar Alenquer e os alenquerenses pelos prejuízos entretanto já sofridos, bem como pelos impactos negativos próprios do funcionamento de semelhante infra-estrutura, os quais já hoje intuímos e que a seu tempo se revelarão;
3. - Não aceitar que, concluído este processo, seja qual for o seu desfecho, o concelho de Alenquer não venha a ser ressarcido dos manifestos prejuízos que estão a ser causados ao seu desenvolvimento. [»]

Para completar o leque dos órgãos de soberania, resta apenas acrescentar que, desde Setembro passado, as Câmaras Municipais de Alenquer e Azambuja, ambas dirigidas por eleitos do Partido Socialista, admitem processar o Estado no caso de o Governo optar pela construção do novo aeroporto em Alcochete, alegando que as restrições à urbanização e à construção impostas nos respectivos concelhos estão a causar prejuízos insuportáveis [»]. Aliás, o presidente de Alenquer, Álvaro Pedro, afirma abertamente que tem «aconselhado os empresários dos loteamentos a recorrer às vias judiciais», acrescentando que cerca de 600 projectos sujeitos a licenciamento municipal receberam parecer negativo devido ao NAL.

Implantação prevista para o NAL na Ota
Fonte: Comissão Local de Acompanhamento do Processo
do Novo Aeroporto de Lisboa, Freguesia do Carregado [»]


Terrenos e loteamentos congelados

A fazer fé nos testemunhos divulgados pelos meios de comunicação social, os proprietários de imóveis sitos na Ota não estão particularmente desesperados com a fuga do NAL para Alcochete, mas exigem a reparação dos prejuízos sofridos pelo congelamento dos seus terrenos. António Varela, tido por um dos maiores proprietários, é dono de terrenos nos concelhos de Alenquer, Azambuja e Vila Franca de Xira, alguns deles sujeitos a medidas preventivas. Este empresário está à frente da Tiner, uma construtora portuguesa que se especializou nos serviços prestados a empresas logísticas (mais de 500.000 m2 de imóveis incorporados no âmbito europeu) e que opera no mercado de habitação brasileiro, onde tem em construção a Vila Atlântica, um mega-condomínio para 20.000 habitantes. Posto isto, vale a pena conhecer os pontos de vista expostos à Lusa pelo presidente da TINER:

«Sinto-me penalizado, tal como os restantes proprietários. Não sei o que o Governo pode fazer para remediar a situação, mas era preciso que algo fosse feito para compensar os prejuízos causados», salientou o empresário, engenheiro civil de formação.
Para António Varela, «os proprietários que compraram terrenos para onde estão definidos usos industriais ou outros e não puderam avançar com os seus projectos devem ser compensados, porque tudo ficou congelado».
Ao mesmo tempo, o responsável do Grupo Tiner sente-se «aliviado» por haver finalmente uma decisão e espera poder agora avançar rapidamente com os projectos que ficaram «congelados».
Entre estes incluem-se áreas comerciais (retails e outlets), centros de distribuição logística, um
lote para 34 moradias e um empreendimento turístico com golfe e hotelaria.
«Espero que se revoguem imediatamente as restrições», frisou. [»]

Vila Atlântica, São Paulo
Antevisão do condomínio (48 torres e 5.180 apartamentos)
e imagem do seu construtor, António Varela
Fonte: ISTOÉDINHEIRO [»]

O presidente da TINER acrescentou que a compensação poderia passar pela redução de taxas e impostos sobre o desenvolvimento imobiliário e a construção, tendo manifestado a esperança de poder avançar rapidamente com projectos “congelados” há uma década.

Note-se, de passagem, que as mesmas declarações, publicadas no site do Diário Económico, suscitaram oito comentários, todos eles pouco favoráveis aos pontos de vista do empresário. António Varela merece ser qualificado como «mais um ladrão analfabeto deste país que tem a mania que é esperto», uma forma elogiosa ditada pela inveja com que, entre nós, são olhados os empresários de sucesso. Mais grosso é outro comentarista que, sob o mote «apareceu um dos bichos!», dá mostras de uma incontida euforia ao ver confirmadas as suas suspeitas: «a gente sabia que eles estavam encafuados na toca, só a enxurrada os fez meter finalmente a cabeça de fora...» . Em todo caso, este eufórico contentamento é mitigado por uma dúvida existencial: «quem serão os outros???». [»]

Não vale a pena perder muito tempo com este tipo de reacções. Se aqui as cito é apenas para dar algum colorido à ideia de que o grande público encara a urbanização como um meio misterioso (a toca) e turbulento (como prever o comportamento de um bicho?), talvez favorável ao rodopio de grandes tubarões, mas por certo pouco propício à sobrevivência dos peixes-palhaço que nele se arriscam a aventurar. A platitude destes tropos facilita a sua difusão e, em última análise, criam uma atmosfera pouco favorável àqueles que, na véspera da grande decisão do Governo, pareciam estar nas melhores condições de desfrutar das primícias devidas à construção do aeroporto na Ota: os proprietários fundiários e os promotores imobiliários...


Indemnizar ou não indemnizar?

Se bem leio nas entrelinhas, a pressão de uma opinião pública pouco favorável ao pagamento de indemnizações aos proprietários aflora nas seguintes passagens da entrevista concedida pelo Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, ao semanário Expresso:

Cristina Figueiredo: Há compensações para a zona da Ota?
Mário Lino:
É um problema. As populações de Alenquer, Vila Franca e Azambuja tiveram os terrenos com restrições de utilização durante 10 anos. É legítimo que se sintam defraudadas. Temos de encontrar uma forma de conseguir contributos positivos para o desenvolvimento desta zona. E estamos disponíveis para o analisar.
E os proprietários?
Não se trata de indemnizações aos proprietários. Assim que desbloquear o processo a primeira coisa que vou fazer é levantar essas medidas restritivas. [»]

O laconismo das anteriores respostas não permite captar o pensamento do ministro no que respeita às indemnizações devidas pela imposição de medidas preventivas extraordinárias. Pelos vistos, o ministro antevê a distribuição de equipamentos sociais como uma forma de promover o desenvolvimento e de contrariar o decréscimo do valor do solo devido ao esfumar do prometido aeroporto internacional. Para tanto, conta provavelmente com o Programa Operacional Temático Valorização do Território [»], uma das componentes do QREN, Quadro de Referência Estratégico Nacional, para o período 2007-2013.

O acenar de um pingue programa de equipamentos sociais talvez seja suficiente para contentar os municípios directamente afectados pela retirada do NAL. Mas, quanto aos proprietários dos terrenos? As compensações sob a forma de equipamentos não devem ser encaradas como uma forma indemnização dos proprietários, uma vez que se destinam generica e indiscriminadamente a todos os habitantes dos municípios. Ora, se as compensações não substituem as devidas indemnizações, será que estas irão ser pagas? A dúvida fica a pairar no ar, uma vez que Mário Lino apenas se compromete a fazer cessar a vigência das medidas preventivas logo que a solução Alcochete estiver em ordem de marcha.

Para adensar um pouco mais o mistério, sucede que as questões suscitadas pelas medidas preventivas, incluindo o ressarcimento dos sacrifícios devidos ao congelamento dos terrenos da Ota, não figuram nem o relatório do LNEC [»], nem os relatórios sectoriais que lhe foram anexados. Embora a distribuição territorial dos grandes equipamentos sociais e a aplicação dos mecanismos facultados pela lei dos solos constituam instrumentos essenciais da organização do território nacional, a verdade é que as referidas questões não figuram no anexo consagrado ao ordenamento do território [»]. O mesmo sucede no caso do anexo dedicado ao desenvolvimento económico e social [»]. Entretanto, no anexo em que são contabilizados custos financeiros [»] aborda-se a questão das indemnizações, mas estas referem-se essencialmente aos custos de expropriação, o que não é o aspecto que aqui nos interessa. Um dos anexos procede a uma análise custo-benfício, sem deter a sua atenção nos aspectos que aqui nos interessam [»]. Finalmente, o estudo jurídico anexado ao relatório do LNEC incide apenas sobre alguns aspectos ambientais relevantes para a localização do NAL [»], entre os quais obviamente não se inclui a questão das indemnizações.


Um planeamento paralizante

Das indemnizações devidas por medidas preventivas que se arrastaram por dez longos anos fala-se a meia voz. Mas daí não retiro a ideia de que o assunto está enredado numa cabala conspirativa. De tal forma estamos habituados à natureza paralizante do planeamento urbano que já nem notamos esse defeito. E, se todos nós estamos condenados a refrear o passo para cumprir os rituais impostos pela excelsa hierarquia que governa o nosso território, ninguém se sente especialmente escandalizado quando depara com mais um caso em que a sociedade civil é confundida e enganada por serviços públicos que, em princípio, existem para esclarecer e ajudar os cidadãos.

O despertar da consciência para esta vil condição só ocorre de tempos a tempos, quando, por oportunidade política, alguém capaz para fazer ouvir a sua voz chama a atenção para as águas estagnadas do nosso urbanismo. Apenas dois exemplos dessas ocasiões que só pecam por singulares. O primeiro situa-se nos finais dos anos 40, no momento em que arranca o progama urbanístico gizado por Duarte Pacheco. Discursando na Assembleia Nacional, o deputado Paulo Cancela de Abreu traça o seguinte panorama:

Sr. Presidente: não tive antes e não temos hoje tempo para ocupar-nos desenvolvidamente do assunto a que vou referir-me. Por isto têm de ser forçosamente resumidas as minhas considerações. Trata-se dos planos de urbanização de que já se ocupou há mais de um ano o ilustre Deputado Albano de Magalhães. [...]
As demoras na elaboração destes planos estão a retardar muitos empreendimentos em numerosos concelhos do País e a fazer esmorecer as suas energias criadoras. Cito como exemplo o distrito de Aveiro, para o qual foram mandados elaborar 15 planos de urbanização e apenas um definitivo foi entregue até à presente ocasião. E apenas 6 aguardam a planta topográfica.
De 259 planos adjudicados, apenas 27 foram aprovados e 37 estão em apreciação. Os restantes encontram-se há muito tempo em poder dos arquitectos urbanistas, e é limitado a 44 o número dos que aguardam as plantas topográficas.
Diz a informação que os técnicos são poucos e o seu trabalho muito. Por isto, os há que além das outras ocupações têm a seu cargo 10, 15 e mais planos e nada ou pouco têm feito!
Acresce que o decreto de 1944, regulador do assunto, diploma sem dúvida notável, contém exigências que a técnica recomenda, mas têm colocado as câmaras municipais em grandes apuros, nomeadamente quando se trata de responder aos questionários que ele impõe. Daí serviços do Ministério terem-se visto na necessidade de acudir em seu auxílio.
Aquelas, estas e outras apontadas pelo Sr. Ministro, a que se procura dar remédio, são as causas primeiras da demora que está prejudicando os municípios e os munícipes.
A falta dos planos de urbanização paralisou inúmeros empreendimentos locais, transacções sobre prédios, construções, etc., o que tudo está dificultando o progresso das vilas e a solução do seu problema da habitação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Mas não é só isto.
Na província, como em Lisboa, muitos terrenos e edifícios estão como que congelados por expropriação iminente ou resolvida que não se executa, ou sob ameaça ou receio dela, que não se efectivam. Disto resultam prejuízos incalculáveis, provenientes de como disse, não se poder construir prédios nem ampliá-los ou transformá-los, nem vender, como tantas vezes é indispensável e urgente por motivo de necessidade económica dos proprietários ou para fins de partilha inadiável, etc. E a sua desvalorização é manifesta, em consequência da incerteza do seu destino.
[Diário das Sessões da Assembleia Nacional, n.º 166, de 1 de Maio de 1948: p. 660-661]

Passados sessenta anos, a lentidão com que nascem os nossos planos urbanísticos continua a constituir motivo de queixa. No novo exemplo, a diferença em relação ao anterior reside no facto de o autor do desabafo já não é um deputado, mas sim um primeiro-ministro. Discursando na Assembleia da República, José Sócrates eulogia o Simplex, o programa que "veio questionar rorinas burocráticas instaladas", e perspectiva a sua entrada no domínio do licenciamento municipal dos trabalhos de contrução:

O Orador: — Sei bem que esta é uma tarefa sem fim, que exige continuidade e persistência — tal como sei que não podemos, nem devemos, abrandar o ritmo das mudanças de que o País precisa. É justamente por isso que trago hoje a debate, neste Parlamento, a reforma e a simplificação dos processos de licenciamento e de planeamento territorial.
Para alguns, estas palavras poderão, porventura, dizer pouco, mas não tenhamos dúvidas: a reforma do licenciamento e do planeamento é central para o dinamismo das actividades económicas, para a competitividade da nossa economia e fundamental para o desenvolvimento do País.
A reforma que o Governo vai promover assenta na revisão do regime jurídico de quatro pilares fundamentais: os instrumentos de gestão territorial; o regime da urbanização e edificação ao nível municipal; a criação de um regime jurídico especial para os projectos de importância estratégica (PIN); e, finalmente, a revisão do licenciamento das actividades económicas.
O Sr. José Junqueiro (PS): — Muito bem!
O Orador: — A situação que se vive hoje com o nosso sistema de planeamento da gestão do território, pura e simplesmente, não pode continuar.
O Sr. Alberto Martins (PS): — Muito bem!
O Orador: — Todos sabemos que a revisão de um PDM pode arrastar-se, penosamente, por mais de uma década e que um plano de urbanização ou um simples plano de pormenor podem demorar uma boa meia dúzia de anos, desde o início até à ratificação pelo Conselho de Ministros. Pelo caminho, sucedem-se — e às vezes contradizem-se — as mais diversas «entidades competentes»; multiplicam-se e sobrepõem-se os controlos administrativos; oscilam as vontades políticas e, inevitavelmente, desesperam os cidadãos e, tantas vezes, desistem das empresas.
É por isso que temos de mudar — e mudar radicalmente!!
[Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 77, de 28 de Abril de 2007: pp. 5-6
]

Eufemisticamente apelidados de entidades competentes entre aspas, os burocratas que pontificam nos serviços técnicos do Estado são criticados por José Sócrates com a veemência de um líder da oposição, como se o primeiro-ministro ignorasse que o aparelho do Estado está sujeito ao poder de condução do governo a que preside. Que esta troca de papéis ocorra perante uma oposição estupefacta só abona em favor da extraordinária resiliência da tecnoburocracia portuguesa e da sua admirável capacidade em absorver os choques adversos que a vão atingindo.


O engodo das normas provisórias

Perante a actuação dos serviços públicos que tutelam — e emperram — a acção de planeamento dos municípios e actividade construtiva dos particulares, alguém menos avisado poderá sugerir que se disciplinem esses serviços, obrigando-os a cumprir normas que garantam a celeridade dos procedimentos administrativos. Ao fim e ao cabo, dirão os mais confiantes nesta receita, trata-se de seguir as pisadas da antiga medicina e a aproveitar a peçonha causadora da doença, transformando-a num fármaco com capacidades curativas.

No caso do nosso urbanismo, as tentativas de pôr em prática o anterior expediente nem sempre têm resultado. A lei bem pode determinar a aprovação de normas moderadoras da arbitrariedade dos serviços do Estado: a concretização desse comando estará sempre dependente da diligência com esses mesmos serviços conceberem as referidas normas. Ora, como é compreensível, as direcções-gerais têm uma grande dificuldade em auto-limitarem os seus poderes.
A génese das medidas preventivas previstas na lei de solos de 1970 é disso um bom exemplo. Entre os seus antecedentes figura a lei que estabeleceu as bases da elaboração e da aprovação do Plano Director do Desenvolvimento Urbanístico da Região de Lisboa, abreviadamente designado por PDRL, Plano Director da Região de Lisboa. A base V do respectivo projecto de lei, da iniciativa do Ministro das Obras Públicas, Eduardo de Arantes e Oliveira, dispunha que:

1. - Na área abrangida pelo Plano Regional de Lisboa e até à aprovação deste, carecem de prévia autorização do Ministro das Obras Públicas, ouvidas a respectiva Câmara Municipal e a Comissão do Plano Regional de Lisboa:
a) - A criação de novos núcleos populacionais e a construção, reconstrução ou ampliação de instalações industriais de 1." ou 2." classes, quando, num e noutro caso, se situem fora das zonas para esse efeito previstas nos planos de urbanização legalmente aprovados;
b) - A exploração de novas pedreiras ou a ampliação das que estejam sendo exploradas à data da presente lei e, bem assim, a execução de terraplanagens importantes de qualquer natureza susceptíveis de alterar a configuração geral do terreno e o derrube de árvores em maciço de área superior a um hectare;
2. - Fica igualmente sujeita à prévia autorização do Ministério das Obras Públicas, por intermédio da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização e mediante parecer da respectiva Câmara Municipal, a construção de novas edificações nos aglomerados existentes, quando situadas fora dos seus perímetros actuais ou das zonas de expansão definidas nos planos de urbanização legalmente aprovados.
3. - As autorizações serão negadas sempre que se verifique que da sua concessão poderá resultar inconveniente para a execução futura do Plano Regional.
[Diário das Sessões da Assembleia Nacional, n.º 166, de 1 de Maio de 1948: p. 660-661]





Privilégios da Costa do Sol

O mesmo artigo 5.º após a discussão na Assembleia Nacional e negociação com o Ministro Duarte Pacheco:

Artigo 5.º - [Planos parciais e reserva de terrenos e edifícios]
Durante a elaboração do Plano de Urbanização e até à sua aprovação definitiva, poderá o Governo aprovar planos parciais respeitantes a vias públicas, praças, parques e campos de jogos, e determinar que sejam reservados os terrenos e construções necessários para garantir a possibilidade futura de execução do Plano.
§ 1.º — Nas construções ou terrenos reservados não poderão ser feitas, a partir da data da aprovação do Plano ou planos parciais, quaisquer obras que não representem benfeitorias absolutamente indispensáveis à sua conservação.
§ 2.º — A reserva das construções e terrenos necessários à execução do Plano não determina a sua expropriação imediata, no todo ou em parte, nem, se esta se fizer no prazo assinado no Plano, o pagamento de quaisquer indemnizações aos proprietários, a título de perdas e danos, salvo o disposto no parágrafo seguinte.
§ 3.º — Os proprietários das construções e terrenos reservados têm o direito de requerer, depois da aprovação do Plano, mas antes de findo o respectivo prazo, que sejam feitas as expropriações; neste caso, tais construções e terrenos entrarão imediatamente na posse do expropriante, que, até ao pagamento do valor da expropriação, assegurará aos expropriados, em cada ano, uma indemnização igual ao juro daquele valor, calculado pela taxa de desconto do Banco de Portugal.
§ 4.º — A reserva caducará se, no prazo de dois anos, a contar da sua data, não forem aprovados os planos relativos aos terrenos e construções que compreende.









Referências

[«] – Ach Gott! Die Kunst ist lang, und kurz ist unser Leben. Johann Wolfgang Goethe, Faust I, 558-559.

[«] – Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 143, de 6 de Julho de 2006: pg. 6545.
http://debates.parlamento.pt/page.aspx?cid=r3.dar

[«] – António Lemonde de Macedo & Eduarda Beja Neves, coord. (2008), Estudo para Análise Técnica Comparada das Alternativas de Localização do Novo Aeroporto de Lisboa na Zona da Ota e na Zona do Campo de Tiro de Alcochete – 2ª Fase - Avaliação comparada das duas localizações. Estudo realizado para o Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações (Relatório 2/2008 – DT, Janeiro de 2008). Lisboa, LNEC, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Departamento de Transportes. [»]

[«] – Jorge Gaspar, coord. (2007), Estudo para Análise Técnica Comparada das Alternativas de Localização do Novo Aeroporto de Lisboa na Zona da Ota e na Zona do Campo de Tiro de Alcochete: Domínio de Avaliação: Ordenamento de Território (Relatório da 2.ª Fase, Dezembro de 2007). Lisboa, CEDRU. [»]

[«] – Augusto Mateus (2007), Estudo para Análise Técnica Comparada das Alternativas de Localização do Novo Aeroporto de Lisboa na Zona da Ota e na Zona do Campo de Tiro de Alcochete – Domínio de avaliação: Competitividade e Desenvolvimento Económico e Social (Relatório Final, 3 de Dezembro de 2007). Lisboa, Augusto Mateus & Associados. [»]

[«] – João Luís Duque, coord. (2007), Avaliação Financeira das Alternativas de Localização para o Novo Aeroporto de Lisboa (Dezembro de 2007). Lisboa, ISEG, Instituto Superior de Economia e Gestão. [»]

[«] – José Gomes Canotilho & Alexandra Aragão (2007), Estudo Jurídico sobre Alguns Aspectos Ambientais Relevantes para a Localização do Novo Aeroporto de Lisboa (Novembro, 2007). S/local. [»]

[«] – Gualdim Silva Carvalho (2007), Alternativa de localização do Novo Aeroporto para a região de Lisboa –Análise da Servidão Aeronáutica (Superfícies Limitativas de Obstáculos do ANEXO 14, Cap. 4) – Alcochete. Lisboa, ANA, Aeroportos de Portugal, Divisão de Regulamentação e Licenciamento Aeronáutico. [»]

[«] - Elisabete Arsénio & José Pedro Pontes (2007), Estudo de Avaliação Comparada das Alternativas de Localização para o Novo Aeroporto de Lisboa na Zona da Ota e do CTA: Análise Custo-Benefício (Relatório Final, DT/NPTS) LNEC, Dezembro, 2007). Lisboa, LNEC, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Departamento de Transportes, Núcleo de Planeamento, Tráfego e Segurança. [»]




10 de janeiro de 2008

Politique d'architecture à deux vitesses

Paysage sans paysagisme

Fernando Gonçalves


La présidence portugaise de l’Union européenne a parrainé le Forum européen des politiques architecturales qui s’est réunie à Matosinhos dans le mois d’octobre dernier. Bien qu’en étroit rapport avec la future politique nationale de l’architecture et du paysage, cet événement a passé presque inaperçu entre nous. Ce silence autour du forum traduira-t-il le manque de volonté d’envisager la qualité architecturale en tant qu’un intérêt de la communauté? Dans ce cas-là, il convient de rappeler que la construction de la démocratie participative passe par l’approfondissement de la culture architecturale.




Le paysage est le résultat visible de la façon dont nous tenons au territoire. Ce rapport entre l’homme et la terre qui le nourri est enraciné en nous depuis des temps immémoriaux. Pour les habitants de l’ancien Égypte, la vallée dans laquelle ils vivent s’appelle Tamery, la “Terre aimée”. Une maitresse généreuse, mais exigeante. Le roi lui-même se sent obligé d’empoigner la pioche du paysan pour ouvrir les canaux qui fécondent la terre noire. Celle-ci est l’image-même du Pharaon, du Peraa, de la “Grande maison” qui prend soin du pays. Et cet acte est le rituel qui signale la fondation de temples et des pyramides, les plus beaux bâtiments que les Égyptiens ont érigés avec les éléments que la terre leur a donné.

Massue du roi Scorpion, c. 3000 a. C.
Asholean Muséum, Oxford

De nos jours, ceux qui occupent le sommet des hiérarchies politiques ne font que rarement appel au symbolisme de la pioche. Pour témoigner les soins pris dans la gestion du territoire, ils préfèrent exhiber les signes du pouvoir qu’ils exercent sur le temps et l’espace de vie des citoyens. Pour le prouver, il n’est pas besoin de chercher loin. Il suffit de regarder les billets d’euros, avec des ponts lancés sur les fleuves et des portes ouvertes dans les bâtiments, ordonnés selon la succession temporelle des styles architecturaux. Dans les billets comme dans le territoire construit par de successives générations, est réfléchie l’identité de la communauté qui l’habite. En ce qui concerne l’Union, une communauté qui se sent solidaire avec le monde (le pont), ouverte à tous ceux qui cherchent son hospitalité (la porte) et fidèle à la mémoire collective inscrite dans son patrimoine (l’architecture).

Recto et verso du billet de 500 euros

La réalité ne respecte pas toujours les idéaux politiques. L’espace de la communauté est souvent fragmenté par le tracé de nouvelles frontières, prêtes à séparer ce qui devrait rester symboliquement uni. Dans son essai “Pont et porte”, Simmel parle de ces frontières et appelle l’attention sur un fait paradoxal: la séparation est l’état qui, de la façon la plus véhémente, proclame l’urgence de la réunion [1].

Les images représentées sur les billets d’euros se réfèrent très subtilement à cette urgence et témoignent de la dette de l’Union envers la culture architecturale dont l’Europe est justement fière. Dette qui, d’ailleurs, est toujours ponctuellement payée. Outre des initiatives propres au profit de l’architecture, les agences communautaires sont toujours attentives aux propositions d’un réseau informel d’experts qui agissent dans le domaine des politiques publiques d’architecture et connu sous le nom de Forum européen des politiques architecturales [2].

Les questions architecturales sont un domaine que le principe de la subsidiarité tend à confiner à la sphère nationale. Mais grâce à ce réseau informel, l’affirmation d’une politique européenne d’architecture s’est frayé un chemin. Rappelons, par exemple, la résolution du Conseil de l’Union européenne concernant la qualité architecturale, approuvée en 2001. Le réseau a produit un environnement favorable à l’acte où le Conseil invite les États membres à “intensifier leurs efforts vers une meilleure connaissance et la promotion de l’architecture et de la conception urbanistique ainsi que d’une meilleure sensibilisation et formation des maîtres d’ouvrage et des citoyens à la culture architecturale, urbaine et paysagère” [3].

Cette invitation laisse entendre que l’Union européenne voit dans l’architecture un stimulus pour une citoyenneté plus exigeante en ce qui concerne la qualité du cadre de vie de la communauté. En fait, le renforcement du débat public de l’architecture est une mesure présente dans toutes les politiques qui sont aujourd’hui en vigueur dans la plupart des pays européens [4]. C’est justement cette idée qui a tracé le parcours de la politique hollandaise d’architecture, considérée un modèle au niveau européen. Après l’approbation parlementaire du programme “Espace pour l’architecture” (1991), destiné à attirer à l’attention du public sur la qualité architecturale, il s’en suit “L’architecture de l’espace”, “Aménager les Pays-Bas” et la “Politique d’architecture et du paysage” [5]. La seule succession des titres suggère un crescendo, qui n’est viable qu’avec le débat concomitant de l’architecture, dynamisé pendant ce temps aux niveaux national, provincial et local [6].

La réalité portugaise est loin du stade atteint par les Pays-Bas. Chez nous, l’architecture ne suscite même pas un compromis politique aussi fort que celui de la résolution approuvée par le Conseil de l’Union européenne, en 2001. Il est vrai que le gouvernement vient de prendre en charge devant l’Assemblée de la République la création d’une politique nationale visant “à promouvoir et stimuler la qualité de l’architecture et du paysage, tant dans le milieu urbain que dans le milieu rural” [7].

Je crains toutefois que la satisfaction d’un tel engagement sera nuie par les petites corporations parsemées partout dans la société civile et qui gênent l’administration publique. Les difficultés vécues au cours de l’organisation du Forum de Matosinhos en sont un bon exemple. En tant que pays organisateur, il appartenait au Portugal de proposer le sujet du forum. Tout justifiait que ce choix serait fait en syntonie avec le titre de la politique approuvée par le parlement: “Architecture et Paysage”.

Par des moments, il y en a eu qui ont pensé que notre pays, grâce à un coup de chance, irait abandonner la queue de l’Europe pour aller de pair avec les Pays-Bas. Douce illusion. En effet, d’une part, il a été dit que le forum était préférentiellement dirigé aux architectes, afin d’éviter un sujet qui favoriserait la confusion avec les paysagistes. D’autre part, il a été souligné que l’Europe attribuait une grande importance à la politique du paysage, digne d’une convention diplomatique [8], en contraste avec le peu d’attention prêtée à la politique d’architecture, objet d’une simple résolution [9]... De ce point de vue, le paysage ne devrait pas figurer à côté de l’architecture dans le titre du forum.

À la suite de ces raisonnements binaires, peu subtiles mais assez réalistes, au paysage de plus hauts vols ont été réservés et la place laissée libre dans le titre du forum a été occupée par le mot territoire, vocable plus neutre du point de vue de la géographie politique des diverses professions libérales. Apparemment cela n’a pas affecté la nature du colloque, étant donné que parmi les conférenciers se trouvaient des architectes paysagistes. Mais en fait, étant invisible dans le titre du colloque, sa présence ne nourrissait plus l’idée que le Forum de Matosinhos serait la mise en marche de la politique d’architecture et du paysage que l’Assemblée de la République voulait faire démarrer.

À cause des précédents détours, le Portugal n’a pas fait ses devoirs à la maison comme il lui fallait. Et c’est bien dommage que cela ait arrivé. Le Forum de Matosinhos a été précédé par celui réalisé à Hambourg, dont le sujet du débat a été “Baukultur pour un développement durable”. Les conclusions de cette rencontre ont contribué à l’inclusion du Baukultur dans la Charte de Leipzig [10] et il aurait été sans doute stimulant de débattre la séparation entre l’architecture et le paysage à la lumière d’une notion à l’évidence nouvelle pour nous. Au cas où cela serait arrivé, l’idée d’une politique d’architecture et du paysage à deux vitesses (paysage à trot et architecture au pas) aurait été critiquée. Le passage de Baukunst (architecture) à Baukultur (culture architecturale) a dévoilé des horizons si élargis que, grâce au nouvel espace ainsi créé [11], la raison d’être de la séparation mentionnée n’aura plus de corps ni de présence.

Ce n’est pas ici le lieu pour commenter l’urgence de la notion de Baukultur et la place centrale qu’elle occupe aujourd’hui dans le contexte de la politique européenne d’architecture. Retenons seulement qu’il s’agit d’une notion difficilement concevable hors des grands courants de la pensée allemande. À ce sujet, nous n’ajouterons qu’une courte note. La première critique de Kant a comme fondement l’espace euclidien et comme couronnement l’Architecture de la Raison Pure. La pensée géométrique ouvre le chemin à la méthode rationnelle et celle-ci nous conduit jusqu’à la science, l’entité qui architecturalement se distingue de la technique, étant donnée l’unité et la finalité du dessin qui la soutient [12
].

À la suite de la pensée critique de Kant, l’initiation au dessin architectural devrait être partie intégrante de la formation pour la citoyenneté, au cas où nous voudrons comprendre la raison profonde des choses, y compris celles qui font bouger le monde de la politique. Dans ce domaine, comme nous le savons, il y a d’autres raisons outre la raison pure. Mais là aussi est importante la discipline architecturale. Il est plus facile de coexister avec la politique et d’accepter sa volubilité naturelle si les relations avec le monde qui nous entoure restent assez stables.L’architecture est un savoir accumulé sur la façon de stabiliser notre présence dans le territoire ou, pour mieux dire, sur la forme d’habiter en harmonie avec le paysage. Un territoire où nous ne voulons pas nous attarder ne sera jamais notre demeure, et sans demeure nous ne sommes que des citoyens de passage.

De cette condition existentielle – imposée à des uns et choisie par d’autres –, parle Heidegger dans le texte consacré aux verbes bâtir, habiter, penser. Dans ce texte, le pont est le trait d’union entre les deux rives du fleuve, celui qui permet la transposition du vide qui les sépare. Or en assurant le passage d’un côté à l’autre, le pont remplit non seulement une fonction mais il acquiert aussi la valeur d’un symbole unificateur, capable de conférer un nouveau sens à ce que nous voyons. Dans ce cas, le pont rend évidente la présence du paysage [13]
. Sans pont ou, d’une manière plus générale, sans les traits qui illustrent la façon dont la communauté habite son territoire, il n’y a pas de paysage...

* * *

Les considérations précédentes suffiront peut-être comme fondements aux conclusions suivantes:

1. - Les anciens paradigmes corporatifs continuent à agir au sein de l’aménagement du territoire, en portant préjudice à la qualité architecturale en tant qu’intérêt public;

2. - La prévision d’une politique nationale d’architecture et du paysage dicte la nécessité de dépasser ces paradigmes et, dès lors, ceux qui ont aggravé les clivages entre architectes et architectes paysagistes;

3. - La scission de la politique nationale mentionnée, en faisant passer d’un côté l’architecture et de l’autre le paysage, ne respecte pas la volonté explicite du Parlement et elle éloigne le Portugal du courant européen qui privilégie la notion de culture architecturale (Baukultur).

En résumé: le Portugal est en train de rattraper le temps perdu qui le sépare de la généralité des États membres de l’Union européenne, étant donné son engagement vers une politique d’architecture, mais il court le risque de marcher dans le sens inverse de celui de la Charte de Leipzig, au cas où l’on continue d’envisager cette politique comme un domaine privé des architectes (les paysagistes exclus) [14].


Version française de Maria Teresa Gonçalves



Références

[1] - Georg Simmel, «Pont et porte», 1909: “Dans un sens immédiat aussi bien que symbolique, et corporel aussi bien que spirituel, nous sommes à chaque instant ceux qui séparent le relié ou qui relient le séparé parce que l’homme est l’être de liaison qui doit toujours séparer et qui ne peut relier sans avoir séparé”.

[2] - Les origines du Forum remontent à 1997, une réunion réalisée dans l’Institut néerlandais d'architecture, dans la ville de Rotterdam, à l’invitation de la présidence néerllandaise de l’Union.

[3] - Résolution du Conseil sur la qualité architecturale dans l’environnement urbain et rural du 12 février 2001 (2001/C73/04).

[4] - Entre les premiers projets du Forum figure le GAUDI, Gouvernance, Architecture et Urbanisme: Démocratie et Interaction, initié en 2001 et géré aujourd’hui par le CIVA, Centre international pour la Ville, l’Architecture et le Paysage, avec siège à Bruxelles.

[5] - Ruimte voor architectuur, 1991-1996; De architectuur van de ruimte, 1997-2000; Ontwerpen aan Nederland, 2001-2004; Architectuur-en Belvederebeleid, 2005-2008.

[6] - Un grand nombre de communes du Pays Bas ont des centres d’architecture, animés par la fondation Architectuur Lokaal.

[7] - Cf. la mesure prioritaire 1.10.1 du Programme National de la Politique d’Aménagement du Territoire, approuvé par la loi n.º 58/2007, du 4 septembre: “élaborer et développer un Programme national de récupération et de mise en valeur du paysage, en développant la Convention européenne du paysage et une Politique nationale de l’architecture et du paysage, tout en l’articulant avec les politiques d’aménagement du territoire, visant à promouvoir et à stimuler la qualité de l’architecture et du paysage, tant en milieu urbain qu’en milieu rural”.

[8] - Convention européenne du paysage, adoptée à Florence le 20 octobre 2000.

[9] - En tous cas, il ne faut pas oublier la Convention pour la sauvegarde du patrimoine architectonique de l’Europe, signé à Grenade le 3 octobre 1985.

[10] - Charte de Leipzig sur la ville européenne durable, du 24 mai de 2007.

[11] - Selon la Charte de Leipzig, “la culture architectonique (Baukultur) doit être définie dans un sens très élargi, comprenant la totalité des aspects culturels, économiques, techniques, sociaux et écologiques qui peuvent influencer la qualité du planning et du bâtiment”.

[12] - Emmanuel Kant, Critique de la raison pure, 1781: “ce que nous appelons science ne peut pas se fonder techniquement, en raison de l’analogie des éléments divers ou des applications contingentes de la connaissance in concreto à toute sorte de fins extérieures arbitraires, mais architectoniquement, en raison de l’affinité des parties et de leur dérivation d’une unique fin suprême et interne”.

[13] - Martin Heidegger, «Bâtir Habiter Penser», 1951: “ C’est le passage du pont qui seul fait exister les rives comme rives (...), le pont rassemble autour du fleuve la terre comme région".

[14] - À la vérité, remarquons que celle-ci ne correspond pas à la position officielle de l’Ordre des Architectes, ces derniers temps.

8 de janeiro de 2008

Portugal por grosso (1)

ou o território traçado por estradões
(Estradão do Tua)



Nota prévia

1 / 2005.06.00
No seu boletim mensal, a Ordem dos Arquitectos avisa que a proposta de PNPOT, Programa Nacional de Ordenamento do Território, está à beira de ser submetida a discussão pública e aproveita a oportunidade para enunciar os "cinco principais pontos críticos" que os seus representantes na Comissão Consultiva do PNPOT transmitiram à equipa presidida por Jorge Gaspar. O quinto e último ponto crítico reza assim:

O território do espaço rural, que inclui uma das maiores manchas florestais (em termos percentuais) da Europa, não pode continuar a ser abandonado, em termos de regras de ocupação. Uma das mais importantes é a definição de responsabilidades e competências quanto aos caminhos e estradas particulares. É uma lacuna cuja correcção deverá ser incluída no Programa de Acção do PNPOT, sob a forma de medida legislativa prioritária. Sem ela não haverá eficiência na implementação, por exemplo, de planos de combate aos fogos florestais, só para citar este caso.
[Ordem dos Arquitectos (2005), «A Ordem e o PNPOT». Boletim Arquitectos, n.º 149: p. 3]



Estradão do Tua

2 / 2007.07.11
Na margem direita do Tua, a EDP e a Teixeira Duarte constróem um estradão de 600 metros de comprimento por cinco de largura, a poucos metros do leito do rio. [Lusa, Público]

3 / 2007.00.00
Os trabalhos promovidos pela EDP alteraram de forma irreversível a paisagem de um vale integrado na REN, Reserva Ecológica Nacional. [Público]

4 / 2007.07.11
Após denúncia de obras ilegais e verificado que os trabalhos não tinham as necessárias autorizações, a GNR, Guarda Nacional Republicana, abre um processo de contra-ordenação. [Público]

5 / 2007.09.00
Na sequência da acção da GNR, a EDP procura obter uma nova autorização da CCDRN, com base num pedido de "autorização de utilização de recursos hídricos", tendo em vista a realização de trabalhos de prospecção geológica no local. [Público]

6 / 2007.09.30
Dá entrada na CCDRN, Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, o auto de notícia levantado pelo SEPNA, Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente do Peso da Régua. [Nota: o SEPNA é um serviço da GNR] [Lusa]

7 / 2007.12.07
O governo aprova versão final do Programa Nacional de Barragens, prevendo a construção dez barragens, entre as quais a do Foz Tua, a iniciar dentro de um ano. O Ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Desenvolvimento Regional, anuncia que todas as barragens serão alvo de um concurso público, excepto no caso do Tua em que será dada preferência à primeira entidade que manifestou interessa na construção desta barragem.

8 / 2007.10.02
O pedido referido em /5/ merece despacho favorável da CCDRN, autorizando a EDP a actuar numa faixa de 10 metros em cada margem, abarcando assim o estradão entretanto construído. [Público]

9 / 2007.12.19
O Presidente do Instituto da Água, Orlando Borges, avisa de que deu entrada na CCDRN um pedido de utilização dos recursos hídricos com o fim de captar água do rio Tua, para a produção de energia hidroeléctrica através da implantação de uma infra-estrutura hidráulica a cerca de 1,25 Km da foz do rio, podendo a área inundada pela albufeira abranger os concelhos de Mirandela, Murça e Vila Flor (barragem, do tipo abóbada de dupla curvatura, a construir próximo da povoação de Lousã). [Diário da República, 2.ª série, n.º 250, de 28 de Dezembro de 2007: pg. 37938]

10 / 2007.12.31
Em conferência de imprensa, a Quercus, Núcleo de Vila Real, em conjunto com a COAGRET, Coordenadora dos Afectados por Grandes Barragens e Transvases, e o NEPA, Núcleo de Estudos para a Protecção Ambiental, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, denunciam a "realização de obras ilegais" junto ao leito do rio Tua promovidas pela EDP. [Lusa]

11 / 2007.12.00
O presidente da Câmara Municipal de Alijó, Artur Cascarejo, confirma que os trabalhos promovidos pela EDP na foz do rio Tua possuem o devido licenciamento municipal, o qual contou com o parecer favorável da CCDRN. [Lusa]

12 / 2007.12.00
Referindo-se ao auto de notícia do SEPNA /6/, o representante da COAGRET, afirma que "até agora não tivemos notícia desse auto de notícia e das suas consequências. A indicação que temos é que o processo andará perdido na CCDRN do Porto". [Lusa]

13 / 2007.12.00
Segundo o Público: "O despacho de Outubro da Comissão /7/ serve entretanto à EDP, pela voz de uma fonte oficial, para reclamar a legalidade da obra. Uma consulta dos vários despachos provam, porém, que, mesmo no âmbito da autorização dos recursos hídricos, a empresa teria sempre de apresentar um projecto de estrada à Comissão antes de avançar com a sua construção. O despacho de autorização impõe a aprovação prévia de projectos de alteração da paisagem e a sua execução "em conformidade" com as normas impostas pela CCDRN". [Público]


Desvitalização do PNPOT

14 / 1998.08.11
A Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo consagra a figura de PNPOT, Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território, qualificando-o como instrumento de desenvolvimento territorial, de natureza estratégica, "cujas directrizes e orientações fundamentais traduzem um modelo de organização espacial que terá em conta o sistema urbano, as redes, as infra-estruturas e os equipamentos de interesse nacional, bem como as áreas de interesse nacional em termos agrícolas, ambientais e patrimoniais".
[Cf. a alínea a) do n.º 1 do art.º 8.º da Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto, diploma que estabelece as bases da política de ordenamento do território e de urbanismo]

15 / 1999.09.22
O PNPOT visa estabelecer os parâmetros de acesso às formas de mobilidade e define um modelo de organização espacial que estabelece as opções e as directrizes relativas à salvaguarda e valorização das áreas de interesse nacional em termos ambientais e de desenvolvimento rural, bem como os padrões mínimos e os objectivos a atingir em matéria de qualidade de vida e de efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais.
[Cf. as alíneas f) do art.º 27.º e a) e c) do art.º 28.º, do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, diploma que desenvolve as bases da política de ordenamento do território e de urbanismo, definindo o regime de coordenação dos âmbitos nacional, regional e municipal do sistema de gestão territorial, o regime geral de uso do solo e o regime de elaboração, aprovação, execução e avaliação dos instrumentos de gestão territorial]

16 / 1999.12.16
Os parâmetros para o dimensionamento das áreas [destinadas à implantação de infra-estruturas viárias] são os que estiverem definidos em plano municipal de ordenamento do território, de acordo com as directrizes estabelecidas pelo Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território e pelo plano regional de ordenamento do território. Até ao estabelecimento dos referiodos parâmetros, continuam os mesmos a ser fixados por portaria do ministro que tutela o ambiente e o ordenamento do território.
[Cf. o n.º 2 do art. 43.º e o n.º 2 do art.º 128.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, diploma estabelece o regime jurídico da urbanização e da edificação]

17 / 2005.06.27
O parecer da Comissão Consultiva do PNPOT "identifica um conjunto de aspectos em que a proposta do PNPOT não se adequa ou, mesmo, se considera em desconformidade" com o seu enquadramento legal, tal como definido pela Lei n.º 48/98 /14/ e desenvolvido pelo Decretos-Leis n.ºs 380/99 /15/ e 555/99 /16/, ou seja, não estabelece padrões de qualidade de vida nem parâmetros de dimensionamento de áreas destinadas a espaços verdes e de utilização colectiva, a infra-estruturas viárias e a equipamentos.
[Nota: o parecer referido no parágrafo anterior foi subscrito pelas seguintes entidades: Ordem dos Arquitectos, Ordem dos Engenheiros, Associação dos Urbanistas Portugueses, Associação Portuguesa de Arquitectos Paisagistas, Confederação do Turismo Português, Associação Profissional de Arqueólogos, Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente, Federação Portuguesa da Indústria de Construção e Obras Públicas, Confederação dos Agricultores de Portugal, e CGTP-IN]

18 / 2007.04.20
O CES, Conselho Económico e Social, no seu parecer sobre a proposta do PNPOT, considera que esta:

[...] não clarifica, de forma precisa, os objectivos (nomeadamente em termos quantitativos) e não define os indicadores que irão permitir monitorizar o acompanhamento do Programa e avaliar se os objectivos foram ou não alcançados.
Neste contexto, não se entende muito bem como poderá o PNPOT ser o documento normativo e enquadrador do ponto de vista estratégico de outros Instrumentos de Gestão Territorial (IGT), como sejam os Planos Regionais de Ordenamento do Território (PROT), os Planos Sectoriais, os Planos Intermunicipais (PIOT) e os Planos Municipais (PMOT).



19 / 2007.04.20
Apesar das omissões denunciadas pela Comissão Consultiva, pelo Conselho Económico e Social e pelos partidos da oposição, a versão do PNPOT aprovada pela Assembleia da República não respeita o enquadramento legal deste instrumento e mantém as lacunas em matéria de padrões de qualidade de vida e de indicadores urbanos e territoriais.
[Cf. Lei n.º 58/2007, de 4 de Setembro, diploma que aprova o PNPOT]

20 / 2007.04.20
O regime jurídico da urbanização e da edificação é alterado de modo a retirar ao PNPOT – e aos planos regionais de ordenamento do território – o encargo de estabelecer directrizes em matéria de padrões de qualidade de vida e de parâmetros de áreas destinadas a usos colectivos. Às normas referidas em 16 é dada a seguinte nova redacção:
– Os parâmetros para o dimensionamento das áreas destinadas à implantação de infra-estruturas viárias são os que estiverem definidos em plano municipal de ordenamento do território;
– O art.º 128.º é totalmente revogado.
[Cf. Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, diploma que procede à sexta alteração ao Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro]


Nota intermédia

21 / 2008.01.08
Em próximas mensagens darei notícias de outros estradões e procurarei arrumar ideias sobre a inexistência, em Portugal, de um quadro legal respeitante às estradas particulares. Por agora, apenas três comentários:

- O que se passa no Tua demonstra a justeza da crítica formulada em 2005 pela Ordem dos Arquitectos, quando denunciou o facto de a proposta do PNPOT se alhear da rede de estradas particulares, assim desprezando o seu potencial contributo para a satisfação da principal missão daquele instrumento que é a de organizar o território nacional;

- A posterior evolução do PNPOT, com a sua queda na triste condição de um instrumento de gestão desvitalizado e destituído de um efectivo conteúdo normativo, obriga a colocar a hipótese de que o actual Governo não está interessado em regrar a sua actuação de acordo com directrizes de ordenamento do território aprovadas pelo Parlamento, caso essa directrizes respeitem ao estabelecimento de padrões de qualidade de vida e a fixação de parâmetros de áreas de cedência obrigatória para usos colectivos;

- A anterior hipótese conduz-nos, por sua vez, à seguinte dúvida: as aludidas omissões do PNPOT correspondem ao preço que Portugal têm de pagar para o Governo ter mão livre na negociação dos famigerados PIN, "projectos de interesse nacional"?


Referências

Público / Edição impressa 2008.02.05
António Garcias e Manuel Carvalho
EDP danifica paisagem de zona protegida do Tua com "estradão" construído sem cobertura legal. CCDR-N autorizou obras nas margens do rio meses depois de a EDP as ter começado.

Lusa / 2008.12.31
Barragem/Tua: Ambientalistas denunciam "obras ilegais", EDP diz que trabalhos estão licenciados.
»

Decreto-Lei n.º 22/2006, de 2 de Fevereiro de 2006 (Ministério da Administração Interna): Consolida institucionalmente o Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) e cria o Grupo de Intervenção de Protecção e Socorro (GIPS) no âmbito orgânico da Guarda Nacional Republicana. »

Parecer da Comissão Consultiva do PNPOT. »

Conselho Económico e Social (2007), Programa Nacional de Política de Ordenamento do Território – Parecer (Aprovado no Plenário de 20 de Abril de 2007) Relator: Conselheiro Nuno Carvalho. Lisboa. »



7 de janeiro de 2008

Babellogos = Babel + Logos



Nem sempre o pior é certo
Calderón de la Barca


Por dever de ofício, tenho acompanhado a evolução da legislação urbanística portuguesa e conheço razoavelmente as lógicas que têm regido a sua aplicação. De um modo geral, julgo que a lei tem evoluído de forma positiva. Hoje, ao contrário de um passado recente, é possível alertar e questionar abertamente as soluções urbanísticas que atentam contra os direitos colectivos e individuais dos cidadãos. Um progresso particularmente apreciado por pessoas da minha geração. Quase todos os que dobraram a barra dos sessenta anos – como é meu caso – foram forçados a acatar, em silêncio, as ordens de um poder político que se dava ares de todo-poderoso. Ainda hoje esse silêncio pesado e paralisante ecoa nos nossos ouvidos.

Poder discordar de quem está investido de poderes de autoridade talvez não resolva, de imediato, qualquer problema. Em todo caso, por mais rudimentar que seja esse exercício de liberdade, sempre é uma forma de mantermos a sanidade mental, condição necessária para, adiante, lidar racionalmente com os problemas que nos são colocados. A crítica precede sempre o acto criativo e, se não exercitarmos a nossa capacidade de pensar criticamente os negócios da república, arriscamo-nos a criar uma cidade em que a razão, na melhor das hipóteses, cede lugar à fantasia.

Felizmente deixámos para trás o totalitarismo do Estado Novo e hoje já podemos contestar o modo como a velha máquina tecnoburocrática pretende aplicar a lei urbanística, tantas vezes entortando os mais elementares princípios do direito. Ao contrário do que dava a entender a propaganda oficial do anterior regime, os tecnoburocratas não têm o privilégio divino de escrever direito por linhas tortas. Se as linhas com que se cose o nosso incipiente urbanismo aparentam ser direitas é porque, quase de certeza, foram muito engenhosamente retorcidas. Caso este blog cresça e amadureça, terei muitas ocasiões de exemplificar aquilo que acabo de afirmar. Por agora basta acentuar que a legislação urbanística ainda não conseguiu afinar grande parte das suas normas pelo padrão da democracia participativa para que aponta o segundo artigo da Constituição da República Portuguesa de 1976.

O desfasamento entre a lei fundamental e as leis avulsas que regem o urbanismo manifesta-se, de forma cada vez mais veemente, no quotidiano dos nossos tribunais. Todos os dias, os meios de comunicação social relatam conflitos suscitados por extravios na construção das nossas cidades e na transformação do nosso território. Os leigos em matéria de direito de urbanismo que se afoitam a acompanhar essas novelas rapidamente ficam enredados por obtusos argumentos legais e técnicos, cuja racionalidade lhes é cada vez mais difícil descortinar. Na ideia dos cidadãos, na lei deveria imperar a objectividade e nos tribunais deveriam ouvir-se discursos racionais. No caso do urbanismo e em Portugal, a objectividade da lei vale sobretudo para disfarçar a arbitrariedade das decisões tomadas por aqueles que nos administram. Por sua vez, os tribunais vêem-se em sérias dificuldades para, de forma coerente e inteligível, fazer justiça com base em textos legais que teimam em passar à margem da realidade.

Se o anterior retrato é fidedigno, advinha-se ser tarefa difícil diagnosticar e desfazer a confusão que tem tomado conta da legislação urbanística portuguesa. Para levar a cabo tal empresa será necessário construir uma visão do mundo mais ampla do que aquela em que se apoia o juízo das instâncias públicas que governam as cidades. Aqui o êxito é duvidoso se tivermos consciência que, no âmbito da União Europeia, o nosso país distingue-se por possuir um dos mais labirínticos sistemas de planeamento urbano e territorial...

Felizmente, a tecnoburocracia tem as suas limitações. Tomando para ponto de partida os trabalhos de Georges Dumézil sobre a organização trifuncional das sociedades nascidas da matriz indo-europeia, direi que os tecnoburocratas gostam de alardear a sua força (função 2), são ciosos da soberania que exercem sobre o território (função 1), mas demonstram sérias dificuldades em garantir a fecundidade da sua acção (função 3). Se há crítica partilhada por todos aqueles que sofrem os efeitos no nosso ronceiro planeamento é a de que o sistema parece ter sido concebido para ir buscar a morte lenta: a elaboração dos planos arrasta-se por decénios e cria um clima estiolante, onde definham as mais vigorosas iniciativas. É certo que, nestes últimos anos, assistimos à ascensão de uma função mais jovem e dinâmica, relacionada com actividades fora dos cânones institucionais das primitivas sociedades indo-europeias: o nec otio, o não ócio, o negócio (função 4). Mas a agitação trazida pela emergência da função negocial traduz-se não tanto numa maior celeridade na satisfação dos interesses públicos, mas sobretudo na maior generosidade com que são viabilizadas as iniciativas dos particulares que merecem o selecto carimbo de interesse nacional.

Quando o percurso discursivo atinge este ponto é tentador cair num moralismo rasteiro e vociferar contra a velhacaria do nosso sistema de planeamento. Por mim, espero sinceramente escapar a essa tentação, tal como espero que este blog não sirva de atractor a lamentações dessa natureza. Como antídoto ao moralismo lamechas que tantas vezes tolda a nossa capacidade crítica, invoco aqui o mito da Torre de Babel, tal como relatado em na Bíblia, no décimo primeiro capítulo do Livro do Génesis:

1 Em toda a Terra, havia somente uma língua, e empregavam-se as mesmas palavras.
2 Emigrando do oriente, os homens encontraram uma planície na terra de Chinear e nela se fixaram. 3 Disseram uns para os outros: «Vamos fazer tijolos, e cozamo-los ao fogo.» Utilizaram o tijolo em vez da pedra, e o betume serviu-lhes de argamassa. 4 Depois disseram: «Vamos construir uma cidade e uma torre, cujo cimo atinja os céus. Assim, havemos de tornar-nos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a superfície da Terra.»
5 O SENHOR, porém, desceu, a fim de ver a cidade e a torre que os homens estavam a edificar. 6 E o SENHOR disse: «Eles constituem apenas um povo e falam uma única língua. Se principiaram desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem todos os seus projectos. 7 Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros.»
8 E o SENHOR dispersou-os dali por toda a superfície da Terra, e suspenderam a construção da cidade. 9 Por isso, lhe foi dado o nome de Babel, visto ter sido lá que o SENHOR confundiu a linguagem de todos os habitantes da Terra, e foi também dali que o SENHOR os dispersou por toda a Terra.

Pieter Bruegel, o Velho, Torre de Babel, 1563
Kunsthistorisches Museum, Viena

Na interpretação vulgar deste mito é comum acentuar o carácter negativo de Babel, encarada como símbolo da soberba humana. De acordo com esta leitura, a diferenciação da “língua única” tem o amargo sabor de um castigo divino e é a prova de que estamos definitivamente fora do espaço e do tempo paradisíacos, outrora usufruídos no Jardim do Éden... Ora bem, a leitura corrente passa ao lado de um aspecto essencial: se com a expulsão do Paraíso, o par humano perdeu a imortalidade mas ganhou a liberdade, com a suspensão da Torre de Babel, a comunidade humana perdeu a unicidade e, por isso mesmo, ganhou a consciência da importância da solidariedade que deve existir tanto entre os homens, como entre as nações. Pois só aspira à reunião quem se encontra separado.

O paralelismo e a complementaridade entre os dois mitos podem ser sintetizados na ideia de que só são verdadeiramente livres aqueles que são incondicionalmente solidários com os seus semelhantes. Se assim é, a expulsão do Éden e a dispersão a partir de Babel não devem ser encaradas como situações puramente negativas, mas antes como o prenúncio de algo positivo. Nos momentos críticos é necessário tomar consciência dos limites acanhados do passado se quisermos evoluir para um futuro mais completo e universal.

Sem Babel e sem a confusão das línguas a palavra seria plana, sem elevação, a música seria monocórdica, sem harmonia, e a poesia pura e simplesmente não existiria... Sem Babel e a sua confusão faltaria o impulso para o ordenamento racional da cidade. E sem esse impulso, os gregos não teriam sido levados a impor à “palavra”, logos (λόγος), o sentido de “razão”, um passo essencial para contrariar a ruína anunciada da cidade dos homens ou, dito de outra forma, um passo essencial para construir a cidade democrática e solidária.

A cidade governada por uma razão promotora da solidariedade entre os cidadãos parece ser uma utopia inatingível. Mas, à luz do mito de Babel, mesmo correndo o risco de iniciar uma obra destinada a ser interrompida, não devemos desistir dessa utopia. A catástrofe final não é garantida pois, como nos assegura Pedro Calderón de la Barca, no siempre lo peor es cierto.